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A próxima vez

1 de março, 2021

Não sei vocês, mas eu ando exausta. Já estava há uns cinco dias sem assistir a um único noticiário na televisão e liguei ontem um […]

A próxima vez

Não sei vocês, mas eu ando exausta. Já estava há uns cinco dias sem assistir a um único noticiário na televisão e liguei ontem um desses canais que emendam um jornal no outro. Peguei um bloco já pela metade e acabei o café da manhã pensando em como dar conta das próximas horas sem desesperançar. Corta para os comerciais e o locutor animado sugere: coisas para fazer enquanto acompanha o seu programa favorito; cozinhar, molhar as plantas, relaxar na rede… Relaxar na rede, meu senhor? 

Tenho até passado um tempo na rede na companhia de A estrangeira de Claudia Durastani, mas de ombro tenso, viu? Ainda no fim de semana, grifei uma frase que me lembrou um episódio triste e ao mesmo tempo aproximador que vivi com o meu pai. Claudia falava do próprio pai e de como – tanto ela, quanto ele – poderiam ter sido outros. “…eu me pergunto: como teria sido, como eu teria sido, ‘da próxima vez´”.

Estávamos meu pai e eu na mala do carro na volta de um carnaval que passamos na companhia de meu namorado de adolescência, minha mãe e um grupo de amigos seus que morava no interior. Esqueci o nome da cidade, mas posso descrever cada centímetro da casa, gigante e de mau gosto, que ficava quase na beira do rio São Francisco. Do rio, também lembro nitidamente; a cor, o cheiro, o enjoo que controlei para conseguir navegar, todos os dias do feriado, nas águas que me deram a sensação de ter sido, a partir daquela experiência, legitimada nordestina em definitivo. O enjoo, os pitus enormes no almoço, o sol a pino e Riacho do Navio tocando no repeat da minha cabeça.

Poderia ter sido lindo, mas foi, como vem sendo a leitura de A Estrangeira, um feriado de ombros tensos. Havia, entre os adultos, uma angústia que nos contaminava. Na volta para casa, meu pai, entre bêbado e desencantado da vida, foi rebaixado à mala do carro – anos 80, vocês sabem como funcionava. Eu reclamei a ordem de minha mãe e fui também encaminhada para o mesmo posto. Lá, juntos em desgraça, ele, cirurgião no auge da carreira, me diz que gostaria de ter sido escritor. Pergunta se seria ridículo começar a registrar as histórias que vem imaginando, e  antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, responde que sim, seria. 

Foi talvez o dia em que o senti mais próximo. Talvez o dia em que pude lhe ver menor e maior ao mesmo tempo, desconhecimento e reconhecimento num susto de poucos segundos. Desde então já lhe dei inúmeros cadernos, na esperança de que começasse. Embora não saiba o tamanho ou a importância deste desejo, também me pergunto como teria sido. 

E você que me lê agora, que desejo ficou guardado no fim da bebedeira de um não carnaval? Quantos caderninhos você vai precisar ganhar para tirá-los do enjoo da mala do carro?

Boa semana queridos. Se cuidem, cuidem dos seus, fiquem em casa, usem máscara, e quando apertar a desesperança, escutem Riacho do Navio. Quem sabe não te ajuda a se imaginar dormindo ao som do chocalho e acordando com a passarada – e ainda melhor -sem rádio e sem notícia da terra civilizada.

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…
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