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Comunicação & Problemas

27 de setembro, 2021

Vergonha!, vergonha!, vergonha!   Vergonha herdada… “[…] E a vergonha é herança maior que meu pai me deixou” – cantou Lupicínio Rodrigues, um dos grandes […]

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Vergonha!, vergonha!, vergonha!

 

Vergonha herdada…

[…] E a vergonha é herança maior que meu pai me deixou” – cantou Lupicínio Rodrigues, um dos grandes da música brasileira dos meados do século xx, tempo em que as pessoas dividiam-se em duas categorias: as que têm e as que não têm “vergonha na cara”.

Claro, os tempos são outros e hoje não se pejam os alegados 20% (talvez não passem de dez, quem sabe uns quinze por cento de impenitentes seguidores-raiz de Bolsonaro) em apoiar seja qual for o absurdo protagonizado pelo ‘mito’.

Assim como número ainda expressivo de desavergonhados empresários que dobram aposta em Paulo Guedes e suas promessas de primazia do ‘mercado’ sobre as ideias (vá lá…) do ensandecido ex-tenente.

…e desmerecida

Bolsonaro, sua turma de fé e adventícios recrutados por Guedes no ‘mercado’ serão dos poucos a subtrair-se do sentimento nacional do momento: a vergonha ante o comportamento do presidente na estada em Nova Iorque para cumprir a honrosa tradição – honra que desmerece – de proferir o primeiro discurso na abertura da Assembleia Geral da Onu.

Se imagens falam mais que palavras, é eloquente a foto-símbolo do ex-tenente e seus ministros a lambuzar-se de pizza e ridículo à porta de restaurante em que foram barrados, como um bando de desordeiros – desordem era não atestar imunização, a começar pelo presidente que se compraz na irresponsabilidade.

Vergonha disfarçada

Outras imagens acentuariam o vexame que o presidente do Brasil protagonizou em Nova Iorque, numa viagem que terminou antes do previsto por falta de interlocutores – a maioria agendada, inclusive de chefes de estado, cancelou os encontros e até líderes da extrema direita trumpista, arregimentados pelo filho-deputado, recusaram envergonhados figurar na mesma foto.

O conservador primeiro-ministro britânico, hoje no segundo ou terceiro time da liderança internacional, apanhado de surpresa num dos primeiros eventos deu um jeito de disfarçar a vergonha e saiu pela tangente, a propagandear o imunizante criado em Oxford – enquanto Bolsonaro, às gargalhadas, fazia pouco de vacinas e reafirmava-se negacionista.

Até o chefe do governo polonês, ele próprio um pária reacionário no concerto europeu, pareceu constrangido ao contracenar com o presidente do Brasil.

Vergonha documentada…

Se as imagens não forem suficientes para ilustrar a constrangedora vilegiatura de Bolsonaro e sua turma, o presidente do Brasil documentou a vergonha no discurso proferido na tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Consta que o Itamaraty, em frustrada tentativa de superar a condição humilhante a que foi relegada nossa diplomacia na gestão facinorosa de Ernesto Araújo, escrevera para ocasião um discurso inserido nos temas mundiais, a minimamente atualizar os posicionamentos do presidente.

Mas a minuta foi recusada pelo Planalto e substituída pelo texto descosido, incongruente que disse nada ao mundo senão mais do mesmo de que ninguém gostou:

o presidente vira as costas a seu tempo e aos parceiros do Brasil em favor de sabe-se lá que ideias adota para agradar seguidores ignorantes como ele.

…na ida, na volta e…

A volta pra casa acrescentaria mais vergonha. Na bagagem presidencial está o registro da baixaria do ex-tenente e parte do primeiro escalão governamental nas calçadas de Nova Iorque e a pornográfica reação de ministros às vaias de manifestantes a favor do Brasil.

Afora o repúdio explícito a sua presença pelo forçado anfitrião – o prefeito da cidade, aliás chamado “marxista” por Bolsonaro.

Imagino o quanto estará preocupado…

…no palácio infectado

Não bastasse tudo isso, revelou-se que o Planalto é um foco de transmissão do SarsCov-2: além do ministro da Saúde, forçado a vexaminosa quarentena antes de voltar ao próprio país até o filho-deputado do presidente, como o pai um trêfego negacionista, engrossa as fileiras dos doentes – aqui me refiro à covid-19, não a doenças de estirpes diversas que o acometem, em destaque as que desconfiguram a mente.

E o procurador geral da República, ao empossar-se no segundo mandato, declarou-se em quarentena após aperto de mão de outro ministro do contagioso Planalto: o advogado geral da União, que como o chefe é avesso aos cuidados prescritos pela ciência.

Afronta e vergonha

Faltasse alguma coisa, o próprio presidente revelou à revista Veja que a primeira-dama Michele – ao contrário dele, notório refratário – recebera primeira dose de imunizante… nos Estados Unidos!

À surpresa acrescenta-se afronta… e vergonha: vacinas aplicadas no Brasil, embora as mesmas oferecidas nos Estados Unidos, não seriam dignas da família presidencial?!

Vingança… ou vergonha

Volto ao samba-canção de Lupicínio: chama-se Vingança, relata envergonhada tragédia de amor como outras presentes na obra do imortal poeta das tragédias amorosas e termina, candente, num paroxismo de dor… e vergonha (cito como lembro na voz de Linda Batista, que o lançou para a posteridade):

“Mas enquanto houver força em meu peito, eu não quero mais nada!,/só vingança!, vingança!, vingança!, ao santos clamar:/haverás! de rolar como as pedras, que rolam na estrada,/sem ter nunca um cantinho de teu, pra poder repousar.”

Haverá praga maior que se vote a um desafeto, mesmo a quem se atribua imperdoável traição?

Vergonha passada

Torçamos por que o sentimento dos brasileiros, de insopitável vergonha do presidente que elegemos, não se incline à vingança da personagem de Lupicínio Rodrigues.

Melhor que “rolar como as pedras que rolam na estrada”, a Bolsonaro e famiglia estará destinada uma longa, estável permanência nas prisões de segurança máxima do estado.

De lá seguirão a envergonhar-nos a memória, perdida porém a capacidade de mais males causar à democracia, à liberdade e à vida.

Desassossegos

Ao “ler e reler” (obrigado!) a edição anterior desta coluna, Bartyra Soares percebeu-me “…imerso num estilo desassossegado, nervoso, como se desejasse dizer tudo o que lhe assalta a imaginação de uma só vez.”

Terá acertado, a sensível intelectual recifense: de fato o colunista assoberbava-se com o ror de horrores relatado na imprensa e tentava, talvez canhestramente, resumir os (mal)feitos e interpretar-lhes as consequências, nos curtos tempo e espaço de que dispomos os jornalistas para apreender, interpretar e reproduzir os fatos.

Entretanto, ela mesma associa-se às minhas perplexidades.

Orquestra desarvorada

– Ou sou eu a desassossegada? – conjetura –, ante tantas barbáries que temos presenciado a cada dia, sob o desarranjo de uma orquestra desafinada, regida pela batuta desarvorada do presidente (recuso-me a denominá-lo ‘nosso’). Tudo é possível.

– Impossível – prossegue – é imaginar-me [a leitora] inventando fantasmas na forma de expressão, se na Esplanada dos Ministérios e noutros locais da vida política a mentira flui e é relatada.

– Também, pudera! – conclui.

Desencanto

Muito mais desassossegado – melhor se diria desencantado – estará Elmer Correa Barbosa, leitor e crítico que me honra com persistente acompanhamento:

– Anulei meu voto em 2018; anulei meu voto para presidente quando essa família de loucos, os zeros se elegeram… eu ainda imaginava ser possível o imbecil do pai ser impedido por ser louco e ocorrer uma nova eleição.

Revolta

Frustra-se, o já desencantado Elmer, se não antevê no horizonte político soluções minimente razoáveis:

– Na próxima eleição terei de optar em votar contra essa família… e a única opção parece-me algum corrupto de plantão; mas nunca um militar ou esse psicopata com seus filhos.

Entendo e partilho a frustração de Elmer, embora discorde de sua opção por anular o voto – não seria mais adequado? votar ‘em branco’, quer dizer, recusar todas as alternativas?

No mais, partilho-lhe a revolta e a conclusão: qualquer um será menos ruim que Bolsonaro.

Vergonha antecipada

Seria ainda Elmer Barbosa que, há duas semanas, anteciparia o sentimento que presidiu a elaboração desta envergonhada coluna:

– Entre acertos e erros, vivemos aterrorizados sob o manto da vergonha.

Corrigenda

Ao sempre atento Clemente Rosas agradeço a avaliação positiva e sobretudo o “retoque formal” ao que escrevi há duas semanas sobre o covarde apaziguamento de Hitler pelos líderes europeus, em 1938–39:

– O nome do ministro francês [que eu chamara ‘Deladier’] é Daladier.

Arte redentora

Sebastião Salgado é o grande fotógrafo de nosso tempo. Cidadão do mundo, engaja-se nas melhores causas e hoje dedica-se com especial ênfase à defesa dos povos indígenas que vivem no Brasil, ameaçados desde sempre e especialmente neste governo que lhes endereça parte considerável de sua fúria destruidora.

Já nos anos de chumbo o corajoso Sebastião enfrentava ditadores e seus beleguins com palavras candentes e sobretudo a força redentora de sua arte, a verberar a miséria, a desigualdade, a predação da natureza e defender a liberdade, o estado de direito.

Mas tudo isso – e isso é muito – não o faz infalível, principalmente quando se entusiasma além dos temas que domina e arrisca-se em interpretações sócio-antropológicas.

Rara derrapada

Foi assim que na terça-feira, 14.09 assistimos a uma rara derrapada do mestre do claro-escuro numa referência aos povos indígenas, aos quais dedica defesa intransigente – no que tem todo o nosso aplauso.

Mas ele disse (cito de memória trecho de reportagem da GloboNews) que os indígenas são algo como “o ser humano antes do pecado original”.

Trata-se de surrada reedição da muitas vezes contraditada teoria do bon sauvage, originada em Rousseau, idealização generosa e carregada das boas intenções que nossa melhor vontade endossa mas a ciência desmente.

Devagar com o andor, mestre, que o santo é de barro.

‘Integração’ perversa

Bem saberá Sebastião Salgado, desde sempre e apesar da qualificação impensada, que não existe o tal ‘índio brasileiro’, típico e único representante dos primeiros habitantes desta porção da América.

A uniformização serve é aos que se opõem à preservação de seu direito originário e, paradoxal pareça, unificam-nos para dividir e corromper, submetê-los a seus desígnios e afinal destruir-lhes identidades e culturas, ‘integrando-os” (eis a palavrinha-chave a revelar as piores intenções) aos milhões de desassistidos de nossos sertões profundos.

Péssima gramática

Ainda assim as manifestações de Sebastião Salgado são benvindas, oportunas sobretudo quando o Supremo Tribunal Federal apresta-se a decidir sobre uma invenção esdrúxula de sua própria lavra, o tal ‘marco temporal’ que poderia condicionar e limitar os direitos inalienáveis dos povos indígenas.

Os arautos da ‘integração’ espúria e perversa assanham-se ante a possibilidade de escamotear-lhes o direito a suas terras, garantido pela Constituição, numa esdrúxula interpretação ‘gramatical’ (em péssima gramática) da letra da Carta cidadã. Tudo sob a deliberada destruição, pelo governo Bolsonaro, dos mecanismos públicos de defesa dos povos indígenas.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])