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Ai

20 de março, 2023

Lola, minha filha mais velha, tem horror a metáfora. Eu não. Eu sou movida a metáforas, são as minhas ferramentas favoritas pra tentar entender o […]

Ai

Lola, minha filha mais velha, tem horror a metáfora. Eu não. Eu sou movida a metáforas, são as minhas ferramentas favoritas pra tentar entender o mundo. O meu e o dos outros. Abri minha primeira sessão de análise de março com um “fui atropelada”. E não era uma metáfora. Embora também fosse. 

Atravessávamos, Lola e eu, a Barão de Tatuí, a uma quadra do consultório. Era uma quarta-feira, já tarde. Eu tinha atendido dez naquele dia. Estava cansada. Preferia ter ido direto pra casa. Mas, na quinta, receberíamos minha mãe, minha irmã e a família para o fim de semana. Saímos pra comprar chocolates. Uma tradiçãozinha de deixar um chocolate embaixo de cada travesseiro. 

Não foi descuido não. Atravessamos na faixa. O carro que nos pegou tinha parado. Eu vi. Parou, mas acelerou. Lola, não caiu, eu me espatifei no chão. Sapato para um lado, celular para o outro. Fiquei lá deitada, sem saber de mim, nem dela. Ela me ajudou, apanhou minhas coisas, perguntou se eu estava bem. Diz que gritei alto, muito alto. E eu me orgulho por ter podido perder a linha. Machuquei a coluna, desloquei o queixo, arranhei o braço e gritei pra Santa Cecília inteira ouvir. Foi um ai de criança, eu lembro. Um ai de quem estava sentindo, mesmo antes do carro encostar, a vida doer. 

Gosto quando percebo a vida conjugando em mim seus verbos. Estamos ela e eu recuperadas já. Sábado à noite, Lola recebeu os amigos em casa. Já passava das 11h e eles lá fazendo seus barulhos, um sanduíche de música, risada e falação. Enquanto houver a alegria fervida da Lola vindo do quarto, enquanto houver a Sofia, minha mais nova, gritando Boys don´t cry enquanto dança a dança mais charmosa do mundo, que é a dela, no meio da sala, enquanto houver a cidade vazia no domingo pra pedalar, pra fazer vento no cabelo, enquanto houver Caetano cantando Beleza Pura e Macalé cantando Sem Essa e Mateus Aleluia cantando Despreconceituosamente no fone,  e qualquer pessoa cantando qualquer coisa, enquanto houver minha mãe, minha e irmã e o povo dela comendo chocolate aqui em casa, enquanto houver os dez da quarta e os outros todos da segunda, da terça, da quinta e da sexta, haverá o que ser conjugado, o que ser vivido e o que ser gritado. 

Amanhã, Lola faz 17 anos. Ela montaria cara feia pra essa, mas penso que o atropelamento me foi útil. Me fez ver de perto o equilíbrio dessa menina, dois pés firmes no chão. Daqui do meu bumbum roxo sentado na cadeira onde escrevo a vocês, desejo que a vida também lhe conjugue um milhão de verbos e que ela os sinta com inteireza, que grite seus ais, que eles não sejam todos de dor, mas que quando forem ela se permita cair, chorar, que ela encontre as suas próprias ferramentas, que ria, dance, encha a vida de música e de gente. Se der pra não precisar ser atropelada pra lembrar do bonito do mundo, tanto melhor. Feliz aniversário, amor. 

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…
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