Brasília Agora


COLUNAS

Comunicação & Problemas

24 de maio, 2021

As vanguardas do atraso do capitalismo escravista   Vanguardas do atraso Foi um horror, a equiparar-se ou suplantar outros horrores que vivemos, o exibido nas reportagens […]

Comunicação & Problemas

As vanguardas do atraso do capitalismo escravista

 

Vanguardas do atraso

Foi um horror, a equiparar-se ou suplantar outros horrores que vivemos, o exibido nas reportagens do Fantástico (Tv Globo) no domingo, 16.05 sobre as agressões contra duas numerosas nações indígenas: os ianomâmis no norte de Roraima e os mundurucus no sudoeste do Pará.

São povos diversos, étnica e culturalmente – para espanto de uma elite econômico-política para quem ‘índio é tudo igual’ –, no entanto sob a mesma ameaça: a invasão de suas terras por ‘vanguardas’ do atrasado capitalismo brasileiro.

De qualquer jeito

Em Roraima, Pará e demais Amazônia estão representadas, essas vanguardas do atraso por agropecuaristas que só sabem produzir sobre os escombros da floresta, madeireiros que invadem reservas florestais e garimpeiros clandestinos que corrompem e envenenam, além de solos, águas e matas, física e moralmente os indígenas sobre os quais se abatem.

No mais setentrional estado do Brasil o escândalo ganha visibilidade maior, filmado e transmitido em vivo e cores pela tv ou redes na internet. Já no vale do Tapajós a invasão é menos escancarada, alicia sorrateiramente mais que combate porém vai em frente de qualquer jeito: se conveniente, os invasores reafirmam com violência a corrupção.

Tropas de ocupação

Nas terras ianomâmis os intrusos chegam às dezenas em embarcações rápidas, potentes, tropas de ocupação que tentam submeter aldeias num combate desigual: fuzis e metralhadoras contra arcos e flechas, lanças e umas poucas, velhas espingardas de caça.

Na mais recente expedição as forças de segurança (inclusive federais), convocadas ao socorro, espantaram num primeiro embate os invasores, depois voltaram às bases e dizem esperar melhores condições meteorológicas para retornar.

Sim, a natureza impõe limites, por exemplo à operação de helicópteros; mas enquanto isso os ianomâmis estão indefesos, se as forças da lei não gostam de navegar; ou talvez os soldados achem que não vale a pena enlamear os uniformes pra defender ‘um bando de índios’.

Mafiosos x mundurucus

No sudoeste paraense instalaram-se, reportou o Fantástico, grupos mafiosos cuja atuação não costuma ser tão explícita mas nem por isso é menos deletéria – e eficaz, para seus propósitos.

As vítimas da vez, os mundurucus, habitam terras em grande parte demarcadas em que a lei assegura-lhes viver conforme a própria cultura, à salvo de ingerências externas; ademais, a reserva faz parte de mais amplo complexo de preservação ambiental que cabe ao estado manter e proteger.

Mas a proteção das pessoas e a manutenção do território falecem quando os mafiosos, mercê de relações espúrias com agentes do estado, infiltram capangas na administração pública e até nas aldeias indígenas.

Quinta-colunas

Pois a máfia descoberta em plena ação pela reportagem tem ‘quinta-colunas’ até nas aldeias em que cooptam desavisados, em geral indivíduos socialmente fragilizados, com promessa de enriquecimento e prestígio; quando necessário acrescentam ao suborno a ameaça: de um lado a ‘participação nos lucros’ da ação ilegal, do outro o risco de um ‘acidente’ fatal.

E a referência à máfia não é força de expressão.

É máfia, mesmo

Atua no vale do Tapajós, identificou a reportagem da Tv Globo, uma ‘família’ que emula as da Cosa Nostra, Camorra, ‘Ndraguetta. São quatro irmãos, seus filhos, primos, sobrinhos e agregados, todos a tocar terror para controlar manu militari margens de rios e os próprios rios, igarapés, ‘furos’, os quais destroem com máquinas pesadas e contaminam com mercúrio.

Os cappi têm nome, sobrenome e cpf conhecidos; seguem livres, leves e soltos a delinquir porque as autoridades – locais, regionais, nacionais – não querem (não podem?) prendê-los.

Ouro maldito

Solapa a segurança dos mundurucus e outros povos do sudoeste paraense uma fatalidade geológica: sob suas terras estão algumas das maiores jazidas de ouro de que se em notícia, afora outros minerais preciosos.

Tais riquezas, cobiçadas pela chamada ‘civilização’, serve-lhes pra nada; muito ao contrário é fonte de perdição, aguça interesses escusos, favorece a corrupção de autoridades, caboclos e indígenas. É o mesmo ouro que infelicitou outros povos originários nos primeiros séculos da colonização do Brasil, a melhor dizer da invasão desta Pindorama pelo europeus.

É aquele ouro maldito das tragédias provocadas pelas ‘entradas e bandeiras’.

Confissão escravagista

Os mais velhos entre meus leitores terão de aprendido na escola que os ‘bandeirantes’ embrenharam-se nos sertões hostis, abriram caminhos à conquista do vasto interior, ajudaram a expandir a colônia portuguesa para além dos limites fixados no Tratado de Tordesilhas.

Tudo isso é verdade, faz parte da história – pelo menos da história escrita conforme a visão dos vencedores. Mas aqueles livros também ensinavam-nos as motivações das ‘bandeiras’: encontrar ouro, prata, pedras preciosas… e – a historiografia oficial confessa – submeter ‘índios’ para escravizá-los.

Heróis sem jaça

Unilateral, a história dos vencedores descreve aqueles homens rudes, ambiciosos, cruéis, implacáveis – e também tenazes, corajosos, visionários – somente por seus melhores atributos. Assim os ‘bandeirantes’ ascenderam ao altar da Pátria, até emprestaram a denominação a orgulhosa alternativa de gentílico dos paulistas, que por mais de século cultivaram-lhes imagem de heróis sem jaça: ergueram-lhes monumentos, batizaram com seus nomes instituições, estradas, praças, ruas – até cidades! –, sob aplauso e emulação dos demais brasileiros.

Ídolos na lama

Menos mal que já a partir da História Nova do Brasil, iniciativa revisora dos anos 1960, contemplem-se outros enfoques da formação histórica do povo e nação brasileira, entretanto ainda incipientes, esparsos, inconclusos sobretudo na abordagem das relações assimétricas dos conquistadores europeus com os habitantes originais do território.

Da progressão dessas reinterpretações dos fatos e fenômenos da história começa a resultar uma nova consciência, inclusive a revelar que muitos dos heróis que idolatrávamos são ídolos com os pés de barro e pior: afundaram-se no barro e não só as partes baixas, também metade longitudinal do corpo – dos pés à cabeça; e o fizeram na lama putrefata dos piores vícios humanos.

Tempo de transição

Sim, leitor arguto, tento modular a indignação e compreender o momento da história em que se forjaram tais heróis e ídolos.

Operava-se, no contexto econômico, a transição do escravismo para o mercantilismo, simultaneamente à afirmação política do poder dos reis sobre a nobreza, os senhores de terras e gentes do agonizante feudalismo. Nem se sonhava moderar o absolutismo, que mal se afirmara, mediante controles e reconhecimento dos direitos dos cidadãos – cidadania, aliás, era conceito desconhecido naqueles tempos pré-iluminismo.

Foi assim inevitável o transplante do pensamento europeu para suas colônias americanas.

Quem tem alma?

Ademais, parcialmente se sobrepunha à hegemonia dos nascentes estados nacionais o poder da Igreja de Roma. Querelas teológicas medievais persistiam a assombrar os novos tempos, e entre elas uma em especial teve grande repercussão nos contatos e conflitos dos europeus com os povos do Novo Mundo:

discutia-se (a sério!, podem crer) nos tribunais da Santa e Bendita Inquisição se os “índios teriam alma imortal”, como os conquistadores.

Imperativo moral

Tal entendimento não elide a constatação de que o mundo mudou e a persistente opressão de uma civilização por outra é inaceitável por injusta, iníqua e também, a apelar ao pragmatismo tão ao gosto de nossos indigentes fundamental-liberais, contraproducente na medida em que afasta o intercâmbio de informações, portanto a evolução do conhecimento e aliena contribuições dos povos da floresta ao progresso da ciência, por exemplo à concepção de novas estratégias de interação com a natureza.

A isso sobrepõe-se, porém, um imperativo moral e ético: nada justifica em nosso tempo veleidades de supremacia da civilização europeia, aliás ‘de segunda mão’, sobre as ameríndias.

Outra história

Seria interessantíssimo ler uma história do Brasil escrita sob o ponto de vista dos primeiros habitantes da terra, que receberam os recém-chegados com simpática curiosidade sem saber o que os esperava: uma guerra de conquista que expulsaria os primeiros anfitriões das terras litorâneas essenciais para sua cultura, sobrevivência e os condenaria ao extermínio, por isso e por tentar escravizá-los, dizimando os recalcitrantes (quase todos…), além de infectá-los com doenças contra as quais não tinham defesas.

Aconteceu há 500 anos, ao aqui chegarem os primeiros europeus e segue a acontecer agora quando o capitalismo, entre nós muito próximo do escravismo e colonialismo nas relações com os indígenas, difere pouco do processo de conquista e extermínio que inaugurou o Brasil.

Madeira ilegal

Eu mal iniciara estas notas quando espocou o enésimo escândalo do governo Bolsonaro, tudo a ver com os povos indígenas e suas terras:

a exportação ilegal de madeira proveniente de desmatamentos idem, segundo a Polícia Federal sob atuação direta e-ou acobertamento da cúpula do Ministério do Meio Ambiente e principais organismos vinculados – inclusive o próprio Ibama, cujo presidente foi afastado pelo Supremo Tribunal Federal.

Incorrigível

Acontece que o ministro Ricardo Sales é o atual ‘menino de ouro’ do presidente depois que perdeu Abraham Weintraub (Educação), Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores). Mesmo diante da saraivada de críticas por essa e outras prováveis trampolinagens, Bolsonaro partiu em defesa de Sales. O que era de esperar-se, se antes não o impressionaram processos de corrupção movidos em São Paulo contra o mesmo, incorrigível inimigo da natureza – o qual, conforme as investigações, aproveita o ímpeto destrutivo para ‘ganhar algum’, que ninguém é de ferro.

Punição invertida

Além de desastroso o ministro Sales é desastrado e acumula desastres, agora em seu desfavor, no exercício político inerente a suas funções. O mais recente ‘tiro no pé’ desferiu quando afrontou a Polícia Federal para defender madeireiros que os agentes apanharam a abater ilegalmente milhares de árvores, transportá-las e comercializá-las, com o que renovaram ações criminosas.

Em vez de impor ‘quarentena’ ao ministro e aprofundar a investigação, o governo Bolsonaro preferiu destituir o superintendente da Pf em Manaus, cuja equipe flagrara o crime.

Crimes a granel

Não se desmoraliza impunimente uma corporação coesa, eficiente, prestigiada e ainda mais quando, no imbróglio, faz a coisa certa. Estava escrito nas estrelas que enfeitam o escudo identificador dos policiais federais que mais cedo ou mais tarde haveria troco.

Que veio cedo, e fulminante, no especial empenho em desvendar, caracterizar e revelar a proximidade – a dizer o mínimo – do titular do Ministério do Meio Ambiente e seus principais colaboradores com graves crimes ambientais já identificados e outros possíveis ou prováveis; a escolher: advocacia administrativa, peculato, corrupção passiva…

Contorno providencial

Curioso aspecto lateral do caso foi a autorização do Stf às investigações da Pf e de pronto lhes dar consequência, sem passar pelo crivo do Ministério Público. O procurador geral da República, que a imprensa percebe alinhado automaticamente ao Executivo, reclamou do sobrepasso; ainda não se conhece a resposta do Tribunal.

Sem precipitar juízos de valor, tudo indica que neste evento a Corte maior decidiu, sim, contornar a Pgr, a prevenir que seu titular obstasse procedimentos que incomodem Bolsonaro, como tem acontecido.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])