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CULTURA

Rodrigo Portella prepara adaptação de obra-prima de José Saramago com Grupo Galpão e musical sobre Ray Charles

8 de maio, 2024 / Por: Agência O Globo

Nome por trás de espetáculos premiados e longevos, diretor se firma como expoente na cena atual com linguagem sem firulas: ‘A beleza do teatro está naquilo que falta’

Rodrigo Portella prepara adaptação de obra-prima de José Saramago com Grupo Galpão e musical sobre Ray Charles
O diretor e dramaturgo Rodrigo Portella — Foto: Dalton Valério/Divulgação

Rodrigo Portella sonhou, por muito tempo, com uma carreira na televisão. Na juventude, ele ansiava ser um ator famoso ou simplesmente “uma celebridade”, como imaginava. Era esse desejo que movia o então adolescente a frequentar cursos de teatro na cidade de Três Rios, no interior do estado fluminense, onde vivia com a família. Mas, a bem da verdade, o garoto não tinha lá muito talento. Por isso, jamais recebia convites, dos poucos encenadores no pequeno município, para trabalhos nos palcos. Diante do problema, passou a escrever e a dirigir peças para si mesmo, desdobrando-se em funções várias. Até que… O rapaz cortou o pulso.

Num ensaio geral de uma trama de atmosfera absurda — batizada de “Ira e desejo dos ratos amantes” —, Rodrigo rompeu a ficção com uma dor bem real ao se esfaquear de verdade, por um descuido em cena. A ferida acidental, “com sangue para todo lado”, como ele recorda, acabou abrindo uma veia artística e expôs a possibilidade de um novo caminho profissional:

— Como precisava continuar os ensaios, pedi a outro ator que fizesse meu papel. Quando sentei na plateia e vi minha peça de fora, senti que o meu lugar não era dentro do palco — repassa ele. — Depois disso, nunca mais entrei em cena.

Montagens sem firulas

De lá pra cá, descortinaram-se três décadas e cerca de 50 espetáculos com a assinatura de Rodrigo Portella. Na função de diretor — “alguém que é, antes de qualquer coisa, um expectador, com ‘x’ mesmo, aquele que vê e expecta, sempre em ação”, como define —, ele entendeu que a força maior do trabalho em teatro residia nas grandes simplicidades.

E assim, aos poucos — com uma linguagem sem firulas e pontuada por pouquíssimos elementos cênicos —, o diretor e dramaturgo, de 47 anos, chamou atenção de colegas e se tornou um dos principais expoentes da cena teatral contemporânea no país. É ele o responsável pela criação de algumas das montagens mais premiadas (e longevas) nos últimos anos.

Para citar apenas alguns exemplos, destacam-se “Tom na fazenda”, de 2017, que ganha apresentações nos dias 7, 8 e 9 de junho em Brasília, após uma bem-sucedida turnê por cidades da França, onde se cristalizou como fenômeno incomum, há dois anos, no Festival de Avignon, o maior evento dedicado às artes cênicas no mundo; “Insetos”, de 2018, com o elenco da Cia dos Atores; “As crianças”, com Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas, sucesso de 2019 que segue em cartaz, até o próximo domingo, no Teatro da UFF, em Niterói, e retorna ao Teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, a partir do dia 31; e “Ficções”, monólogo com Vera Holtz inspirado no livro “Sapiens”, de Yuval Harari, que reestreia no Teatro Faap, em São Paulo, a partir da próxima sexta-feira, em temporada que se estende até 28 de julho.

Para dar conta de tudo isso, o diretor se equilibra numa “ponte área meio maluca” entre Espanha — para onde se mudou, em 2021, a fim de realizar um mestrado — e Brasil. Enquanto desenvolve projetos com artistas na Europa, ele consolida parcerias em solo tupiniquim. Há novidades em gestação. Em novembro, Portella aporta no Teatro B32, em São Paulo, com um musical nada tradicional sobre Ray Charles, com dramaturgia inspirada no livro de memórias escrito por Ray Charles Robinson Júnior, filho do virtuose do piano americano. Em seguida, junta-se aos mineiros do Grupo Galpão para montar uma adaptação de “Ensaio sobre a cegueira”, obra-prima do português José Saramago. Em paralelo, há peças inéditas engatilhadas com nomes como Eduardo Moscovis, Thalita Carauta, Luís Miranda e Débora Lamm.

O precário e a criatividade

A distância da terra natal sedimenta algumas certezas relacionadas ao labor nos tablados. Ele está adorando o contato com o processo de pensamento, produção e realização teatral no exterior. E, por enquanto, não cultiva planos de voltar a morar por aqui.

—É interessante ver o funcionamento das coisas na Europa, no sentido de o teatro ser muito mais estruturado. Mas é também uma forma burocrática, sabe? É tudo limpo, quase como se não quisessem sujar as mãos no palco. E acho interessante perceber o contrário: o quanto somos, no Brasil, mais criativos, justamente devido à precariedade — analisa. — Aprendi a fazer teatro de forma analógica, num contexto que é o avesso do que estou vivendo agora. Fazia peças com o mínimo, com nada, passando livro de ouro no comércio, pedindo para as mães dos atores costurarem o figurino… Não havia acesso à matéria. Não podia colocar uma parede em cena, por exemplo. Por conta disso, entendi muito cedo que a forma mais potente de me comunicar era através da imaginação. E vi que a relação do espectador, nos teatros, era bem parecida com a do leitor de literatura de ficção.

Hoje, o trunfo das produções dirigidas por Portella está justamente nesse aspecto, algo que ele faz questão de realçar a cada nova montagem. Em “Tom na fazenda”, os atores chafurdam na lama, único elemento em cena. No mais recente “Ficções”, Vera Holtz passeia por uma miríade de temas existenciais, praticamente sem o apoio de objetos.

— A beleza do teatro está exatamente no “não fazer”, naquilo que falta e não está presente, e que cada espectador imagina de um jeito diferente — sustenta Portella. — E isso é um paradoxo interessante, porque o teatro acontece num espaço limitado, mas é um campo expandido, muito mais do que o cinema, por exemplo.

O diretor dá uma gargalhada ao pensar nos desejos que o colocaram, na juventude, nos trilhos ladeirentos dessa profissão. Glamour, fama, luxo e riqueza? Agora ele tem os pés suficientemente fincados no chão para saber que não há nada, nada disso à vista. O teatro é, ele indica, tragicômico.

— Quando morava em Três Rios, achava que, no dia em que ganhasse o Prêmio Shell, seria um diretor famoso, com grana, apartamento na Lagoa (na Zona Sul do Rio)… E aí ganhei o Prêmio Shell (com “Tom na fazenda”), e continuei pagando aluguel com mais duas rendas — diz ele, aos risos. — Teatro é foda, por isso. É uma ilusão. Ao mesmo tempo que fico triste, rio disso.


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