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Sad girl: entenda como histórias sobre garotas tristes viraram hit literário

31 de janeiro, 2024

► Nicho trouxe mais liberdade para mulheres falarem de suas imperfeições e crises emocionais: ‘É um alívio saber que não existe só mocinha na literatura’, […]

Sad girl: entenda como histórias sobre garotas tristes viraram hit literário
Ottessa Moshfegh: 'Ser uma sad girl é um ato de rebeldia. Eu nunca quis ser a mamãe de ninguém' — Foto: Divulgação

► Nicho trouxe mais liberdade para mulheres falarem de suas imperfeições e crises emocionais: ‘É um alívio saber que não existe só mocinha na literatura’, diz autora

Cecilia Madonna Young, de 23 anos, gosta de ouvir Phoebe Bridgers, cantora que declarou que é “mais fácil ser sincero quando você está triste”. Também se identifica com as jovens melancólicas dos filmes de Sofia Coppola, em especial “As virgens suicidas”. E se diz fã de Ottessa Mosfegh, cujo romance “Meu ano de descanso e relaxamento” (Todavia) fala de uma garota que decide passar 12 meses sob efeitos de remédio para dormir. Citando estas e outras referências, a paulistana está mergulhada na cultura sad girl — literalmente, “garota triste”.

O rótulo já foi usado para definir uma estética, um ethos geracional e até trend no TikTok. Talvez o que melhor o caracterize, porém, seja o fato de trazer mulheres descritas como problemáticas e com sentimento de inadequação expressando com liberdade suas montanhas-russas emocionais. Na literatura, já é um gênero à parte, liderado por títulos contemporâneos como “Conversas entre amigos” (Companhia das Letras), de Sally Rooney, ou “Deve ter algo de errado comigo” (Universo dos Livros), de Meg Mason; e pelo revival de alguns clássicos como “A redoma de vidro”, de Sylvia Plath (Biblioteca Azul).

Estreia de Cecilia na literatura, o recém-lançado “Tudo o que posso te contar” (Record) é mais um que poderia entrar nessa categoria. Como em um diário íntimo, a jovem autora coloca a nu sofrimentos atemporais — e outros que parecem próprios da geração Z. Entre ilustrações, colagens e monólogos, fala sobre pensamentos suicidas, antidepressivos, o arrependimento de se expor demais nas redes e os problemas com a autoestima (a quarta capa traz uma única frase: “Preciso que você goste de mim”). Em algumas passagens, recupera lembranças da mãe, a escritora e roteirista Fernanda Young, morta precocemente em 2019, aos 49 anos.

— Consumo muita “mídia” sad girl — conta a escritora. — Amo tudo que cai nesse questionamento: será que não estou indo além do que deveria na tristeza? Uma amiga que leu o meu livro disse que foi a primeira vez que encontrou alguém escrevendo sobre coisas que adolescentes da nossa época vivem, como se sentir ótima por pular uma refeição.

Crítica mal compreendida

Mundo afora, a difusão da cultura sad girl não passou incólume pelo raio problematizador. Os críticos acusam o gênero de trivializar e romantizar a depressão com suas personagens antenadas, glamourosas e autoindulgentes.

— Concordo que a cultura sad girl corre muito o risco de cair nessa coisa romantizada, e talvez até eu caia nisso às vezes — diz Cecilia. — Ao mesmo tempo, a gente precisa falar de algo para entender que não é bom. Quando leio livros neste registro percebo que não estou sozinha. E isso é como se sentir abraçada.

O maior case desse debate continua sendo o celebradíssimo “Meu ano de descanso e relaxamento”, lançado em 2018 nos EUA (e em 2019 no Brasil). Sua autora, a americana Ottessa Mosfegh, foi definida pela ensaísta Jia Tolentino como “a mais interessante escritora sobre o tema de estar vivo quando estar vivo soa terrível”. A protagonista é vista como o protótipo da heroína sad girl. Imperfeita, caótica e cool, junta beleza e glamour com atitudes moralmente duvidosas. Mesmo tendo tudo que outras mulheres gostariam de ter, não consegue ser feliz.

Embora o livro seja uma sátira ao vazio de nossa época, muitos leitores e leitoras viraram fãs da personagem, o que preocupou até mesmo a autora. Para ela, o maior problema é quando o arquétipo da sad girl acaba sendo reduzido a uma “estética” nas mídias sociais: uma seleção com curadoria de livros, hábitos, vibrações, memes etc.

— Nesse caso, sad girl acaba sendo uma marca, uma personalidade on-line. É algo para ser visto — diz a autora, cujo mais novo livro lançado no Brasil, o policial “Morte em suas mãos” (Todavia), nada tem a ver com o rótulo. — Qualquer pessoa com depressão e dor reais não veria isso como algo bonitinho.

No geral, porém, Ottessa, percebe a cultura sad girl como algo “bom” e “libertador” para as mulheres.

— Parte de se identificar como sad girl é a consciência de ser humana — explica. — Quem, entre nós, pode olhar para o mundo e dizer que se sente perfeitamente equilibrado? Garotas são condicionadas a serem maternais. Não devem reclamar, expressar dor e ser complicadas. Mas, se você é disfuncional e ansiosa, ninguém pode lhe cobrar para cuidar dos outros. Nesse sentido, ser uma sad girl é um ato de rebeldia. Eu nunca quis ser a mamãe de ninguém.

Meme irônico

Autora do romance “Sad girl novel” (de 2023, sem previsão de lançamento no Brasil), a australiana Pip Finkemeyer acredita que o gênero tem uma peculiaridade. Antes de ser capitalizado pelos editores, surgiu como uma tendência orgânica na internet, entre leitores que gostaram de um certo tipo de livro — e pediram mais. Ela acredita que, entre leitores e autores, há uma certa consciência de que o rótulo sad girl é problemático por si só.

— Acho que houve um elemento de meme irônico que veio com a concepção da expressão, o tipo de humor que só funciona quando você está zombando de si mesma — diz. — É uma maneira de se antecipar à conclusão dos outros, pegando uma crítica potencial e transformando-a em agência.

Esta autoironia está presente no livro de Finkemeyer, que explora o nicho ao mesmo tempo em que reflete sobre suas consequências. O romance leva o título do livro escrito pela protagonista dentro do livro. A personagem, Kim, luta contra a ideia de que tudo o que ela poderia escrever seja trivial, da mesma forma que Finkemeyer vê muitas de suas (jovens) colegas escritoras preocupadas em não serem levadas a sério ao escrever sobre tristeza (ou qualquer outro assunto). E ela ainda mora em Berlim, “sem dúvida a capital das garotas tristes”, segundo Finkemeyer.

— Como uma millennial branca relativamente privilegiada, qualquer coisa que ela escreva sobre suas experiências, ou mesmo que eu escreva sobre as minhas, será inevitavelmente enquadrada no universo das sad girls, goste-se ou não — diz a autora. — Kim faz aquilo que todos os escritores e leitores odeiam: ela tenta fazer a engenharia reversa de um best-seller observando as tendências de publicação e trabalhando a partir delas.

Espécie de pioneira das sad girls, a francesa Françoise Sagan (1935-2004) dizia que “é melhor chorar em um Jaguar do que nos transportes públicos”. Não por acaso, seu “Bom dia, tristeza”, de 1954, acaba de ganhar reedição nacional pela Record. O fato é que beleza e riqueza tornam as personagens problemáticas populares — o que não é, todavia, responsabilidade de suas criadoras.

Para a escritora Maria Clara Drummond, a falta de ferramentas teóricas faz muitos leitores (especialmente os mais jovens) acessarem apenas uma camada superficial das narrativas.

— As sad girls são quase todas ricas e bonitas, tipo as personagens da Sofia Coppola — diz a autora de “A realidade devia ser proibida” (2015) e “Os coadjuvantes” (2022), ambos lançados pela Companhia das Letras. — É uma mistura de identificação existencial com uma estética aspiracional, um combo e tanto.

Drummond conta que conviveu com a depressão dos 12 aos 32 anos, uma experiência que trouxe para seus livros indiretamente. Mas ela não se considera uma sad girl, embora lembre de ter glamurizado a tristeza na adolescência. Seu sonho na época era ter um retrato de Francesca Woodman, a jovem fotógrafa novaiorquina que se matou aos 23 anos em 1981.

— As doenças mentais eram um grande estigma até começar a surgir essa estética de garota triste — diz. — Hoje, acho que os jargões psicanalíticos e psiquiátricos tornaram-se quase uma identidade, algo a se colocar na bio do Instagram.

Autora da HQ “Parece que piorou” (Companhia das Letras) e do romance “Com todo meu rancor” (Rocco), Bruna Maia lamenta que o aspecto raivoso de autoras do nicho seja menos realçado que sua melancolia. Por isso, defende a existência de outra expressão: a angry girl (garota raivosa), que age na força do ódio.

— Acho que essas personagens imperfeitas ou meio detestáveis atraem o público feminino porque nós mulheres devemos seguir uma série de prescrições de comportamento e nos sentimos aliviadas quando percebemos que não existe só “mocinha” na literatura — diz Maia, que também se diz inspirada por “Meu ano de descanso e relaxamento”. — Está na hora de a gente olhar mais para a raiva presente nessas autoras e se permitir levar a fúria feminina aos extremos.

(Agência O Globo) — Foto: Divulgação

Legenda da foto: Ottessa Moshfegh: ‘Ser uma sad girl é um ato de rebeldia. Eu nunca quis ser a mamãe de ninguém’ — Foto: Divulgação