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Sai caro

10 de outubro, 2023

Estou há dias pra contar uma história pra vocês. Faz um mês, mais ou menos, que ouvi no consultório um relato que me impactou como […]

Sai caro

Estou há dias pra contar uma história pra vocês. Faz um mês, mais ou menos, que ouvi no consultório um relato que me impactou como nenhum outro tinha me impactado até então. Foi a descrição precisa de uma cena que era em si bastante gráfica, mas era ainda mais simbólica. Uma sessão pra guardar na memória pra sempre, pela força do relato, a forma como ele foi feito, o tom do analisando, as reflexões que ele foi pescando enquanto falava. Os nós sendo desatados assim diante de você. É bonito como não sei se pode haver outra coisa tão bonita.

Um dos personagens da história era uma barata. Nunca tive questões com baratas. Mesmo. Lembro de uma barata de coqueiro que persegui quando novinha numa casa de praia. Ela vinha, eu ia, eu ia, ela vinha. Mas depois da sessão, fui vivendo um estado de alerta ‘baratal’ meio complicadinho de administrar. Pra vocês dimensionarem: meu gato é branco com manchinhas pretas, ele passava e eu tomava a mancha por barata, sentia acelerar o batimento cardíaco, suar a palma da mão, todo dia, várias vezes por dia. Pedaço de papel na mesa, barata. Folha caindo na minha cabeça no meio da rua, barata. Isso naquela semana de onda de calor em São Paulo. Tu entende?

Corta pra madrugada da terceira semana pós sessão impactante. Umas 2h da manhã, sexta-feira 22, a noite mais quente do ano, 29,5°C, sono profundo. O ventilador está ligado, eu sinto um toquezinho nas costas, o vento talvez. Arrumo o lençol. O toquezinho insiste, o gato talvez. Tateio a cama. Lembro que os gatos têm dormido na varanda tamanho o calor. O toquezinho se intensifica, um pesadelo talvez. Abro o olho, pego na camisola, por fora, nada. Por dentro dela sinto os toquezinhos. Levanto. É uma barata em patas, antenas e exoesqueleto. Viva, grande, rápida. Das costas, pro pescoço, do pescoço, pra raiz do cabelo. Eu pulo, grito, bato em mim. Com força. Sou como um circuito de fórmula 1 a ser percorrido pela barata. Ela por todos os lados. Eu penso que são muitas então. Há de haver outras. Batimentos cardíacos acelerados, corpo inteiro molhado de suor, respiração curta. Até que ela desiste, pula no meu travesseiro. Eu tranco o quarto, corro pra sala, é como se o mundo já não fosse lugar seguro, eu choro como um bebê, os gatos naquela cara de “o que foi isso, mulher?”

Vou poupar vocês dos detalhes, mas quando tomei coragem pra entrar de novo no quarto já passava do meio dia. Achei. Era uma. Matei. Dedetizei o apartamento. Fui retomando a direção. Mas é mais do que isso. Havia, na história do analisando, um pontinho – micro – que cruzava com uma história minha. O cruzamento era pequeno, mas o lugar onde ele encostou não. E eu vinha, na minha própria análise, negligenciando esse pontinho, sabe? Não adianta, as questões nos voltam dos bueiros mais profundos, sejam elas do tamanho que forem. Ui! Olhem aí pras baratas, minha gente. Antes encará-las à luz do dia. Boa semana, queridos.

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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