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Comunicação & Problemas

22 de fevereiro, 2021

O deputado irrelevante e o atraso das vacinas   (in)Certo deputado Um (in)certo Daniel Pereira elegeu-se deputado federal em 2018, na onda reacionária de Bolsonaro […]

Comunicação & Problemas

O deputado irrelevante e o atraso das vacinas

 

(in)Certo deputado

Um (in)certo Daniel Pereira elegeu-se deputado federal em 2018, na onda reacionária de Bolsonaro e já na campanha (do ex-capitão e do então bolsominion Witzel, que o emulava no Rio) disse a que veio: rasgou placa que homenageava Mariele Franco, vereadora progressista carioca assassinada, suspeita-se, por milicianos.

Empossado, Rafael Silveira aliou-se ao que há de pior na tropa de choque bolsonária, ameaçou adversários com a truculência dos que de força só conhece a bruta (se ideias têm força, essa gente ignora): “Que venham! – desafiou, a fazer ‘arminha’ – não sabem com quem estão-se metendo” (cito como lembro, só corrijo a gramatica).

Pregação abusiva

O (in)certo deputado aprontou o que podia e não podia. Repercutiu na Câmara as aleivosias do ‘gabinete de ódio’ do segundo filho do presidente sempre que pôde (não pode muito, quem pertence ao mais baixo clero congressual em estatura política e baixarias proferidas).

Já nas redes de mídia esteve ativíssimo a pregar a volta do Ai-5, da ditadura (com Bolsonaro, claro), o impeachment de ministros do Stf, entre outros abusos contra as instituições e seus representantes.

Assim o tal Samuel Oliveira acabou indiciado no inquérito aberto pela Corte maior para identificar autores e financiadores das divulgações de ‘notícias’ falsas e de agressões às instituições.

Trincou, vai quebrar

Nada disso intimidou o trêfego parlamentar, que se imaginava respaldado pelo mais alto escalão do Executivo. E esteve, de fato.

Embora contido nas investidas contra o estado de direito pelo temor resultante da prisão do amigão Queiroz, a ameaçar sua família e ele próprio, o presidente não deixou de acenar a sua tropa de choque com promessas de carinho e proteção.

Mas “tantas vezes vai o cântaro à fonte que um dia lá deixa sua asa”, reza o provérbio ibérico e num belo (horrível!) dia a cerâmica do pote trincou-se irremediavelmente, a ponto de perder não só a alça: sem apoio, rola “sobre as pedras que rolam na estrada” (apud Lupicínio), a empestear tudo com o esgoto que contém.

Pote de imundícies

O cântaro verteu imundícies, agressões e ameaças. Num vídeo de quase vinte minutos o tal deputado investiu contra o Supremo Tribunal Federal, pediu a destituição dos onze ministros, endereçou-lhes palavrões, ameaçou agredi-los fisicamente, acusou um deles de vender sentenças e soltar bandidos, outro de perseguir generais… Tanto fez que emergiu do anonimato, não sem um alto custo.

O ministro encarregado do inquérito sobre fake news e ataques contra as instituições decretou-lhe prisão em flagrante e com presteza o plenário referendou-a unanimemente (em 45 minutos!), com votos lacônicos que ressaltaram a gravidade do crime e reduziram o relevo do criminoso: é insignificante, mas vai preso assim mesmo.

Finalmente!

O presidente da Corte, ao anunciar o resultado, sem descurar da insanidade destacou a pequenez do agressor ao convenientemente ‘esquecer-lhe’ o sobrenome: “Daniel… o quê?” O relator socorreu-o: “Silveira”.

(E não é que lembrei o nome? A mim parecia não mais que um celerado com cara de miliciano, jeito de miliciano, cercado de protetores de milicianos – seria miliciano?)

Pois, então, está nominado.

Falsa ressuscitação

Certo a constatar que as loucuras do parlamentar-com-cara-de-miliciano não são atos isolados, o Stf resolveu conferir e as primeiras reações no Legislativo deram impressão de que não seria blefe do enfim conhecido Daniel Silveira: ele estaria, de fato, protegido.

A cúpula da Câmara, dominada pelo ‘centrão’ corporativista e com muitos integrantes temerosos da Justiça, ensaiou enfrentar o Judiciário, recusar a prisão e no caminho tentar um acordão que libertasse o deputado e salvasse a face das instituições com promessa de punição em seu Conselho de Ética – cataléptico, ele erguer-se-ia do leito de uti para julgá-lo.

Pagou pra ver

Mas o Stf pagou pra ver, sabendo que o oponente não teria na mão mais que um par de valetes (seriam os dois filhos federais do presidente?) para enfrentar seu flush máximo: cinco cartas de igual naipe e em sequência, no topo, além de seis outras prontas a conformar novas combinações vencedoras se houvesse outra rodada.

Não precisou.

Apanhado em blefe o presidente da Câmara recuou. Constatou haver maioria para manter preso o agora sabido parlamentar-com-cara… etc. e marcou sessão plenária para sexta-feira (!), quiçá na esperança de não haver quórum.

Ter-se-á esquecido de que as votações podem ocorrer remotamente, onde quer estejam os parlamentares?

Rastro imundo

Assim o agora nominado, medíocre deputado seguirá preso, por esmagadora votação de seus pares (a maioria nem o aceita como tal).

Pena que no caminho deixe um rastro de sujeira: já no momento da prisão teve tempo de postar mais impropérios no celular; ao adentrar o Instituto Médico Legal para os exames de praxe insurgiu-se contra a policial que o mandou usar máscara, ofendeu-a e foi docilmente contido pelos agentes federais (os que o prenderam!) com suaves toques no ombro, como se acalmassem um amigo exaltado. E ainda nas dependências da Polícia Federal do Rio foi flagrado com dois telefones celulares – como pôde?

Humorismo involuntário

Sobre o pântano viria a pairar uma nota quase cômica: a mulher do preso enviou-lhe mensagem de regozijo por que ele já estaria “em casa”, quando o soube transferido da carceragem da Pf para um batalhão da Polícia Militar no Rio.

No caso a “casa” casava-se com o passado do parlamentar-com-cara… etc. a um ponto que ela talvez não percebesse: quando policial Silveira passou parte do tempo no xadrez, foram sessenta punições em seis anos!, antes de ser expulso por inaptidão e insubordinação.

Cortina de fumaça

Pior que tudo isso é sensação de inutilidade, perda de tempo com tal figurante numa hora em que há tanto o que fazer – por exemplo enfrentar simultaneamente a pandemia e o governo que tenta negá-la, como avestruz que enfia a cabeça na areia para que o perigo, não visto, deixe de existir.

Leiam, a propósito, o excelente artigo do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay para o site Poder360, no link https://www.poder360.com.br/opiniao/governo/cortina-de-fumaca-por-antonio-carlos-de-almeida-castro/

Debate estéril

Advogado talentoso e bem informado, Kakay preferiu ausentar-se de um debate estéril que mobilizou alguns colegas a propósito da prisão de Silveira: discutem se estaria caracterizada a condição exigida, o tal flagrante em crime inafiançável.

Colocar esta questão parece-me, primeiro, contraproducente e, afinal inócuo. O que vão conseguir os atuais críticos da posição do Stf é animar a extrema direita hidrófoba que quer usar os instrumentos da democracia para destruí-la, além de reacender fora de hora a peleja de juristas ditos ‘principistas’ versus ‘consequentistas’.

Stf locuta

E o debate está mal colocado: compete ao Supremo Tribunal Federal interpretar a Constituição, dar a última palavra em quaisquer dúvidas na aplicação das leis e no caso já o fez, clara e definitivamente pelo voto unânime de seus onze ministros.

É esse um dos poucos ensejos de aplicar-se, no estado democrático, um velho brocardo autoritário: Roma locuta, causa finita – algo como ‘Roma falou, assunto encerrado’, a expressar o primado do Papa nas querelas de sua Igreja.

Negacionismo dá nisso

Até ensaiamos reeditar reiterados sucessos de vacinação em massa mas esbarramos no negacionismo do presidente (“gripezinha” na deflagração da pandemia, “conversinha” na segunda onda) e consequente inércia do ministro da Saúde que, afinal, o chefe moldou à sua feição.

A dupla Bolsonaro + Pazuello conseguiu sabotar os esforços dos institutos Butantã e Osvaldo Cruz, que se aprestaram a importar e produzir vacinas com tecnologias chinesa e europeia.

Em seguida, com ajuda do inacreditável chanceler ‘olavete’, perturbam-lhes as relações com os parceiros e atrasaram em mais de mês a chegada das vacinas, as prontas e a matéria-prima para produção aqui.

Vírus da ignorância

Temos longa tradição em todo o processo de criação, produção e aplicação de vacinas. Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, Vital Brasil e outros pioneiros absorveram, adaptaram e aprofundaram, conforme nossas necessidades, estudos internacionais e deram partida a uma história de sucessos.

Só não nos imunizarmos contra a sesquipedal ignorância, a burrice atávica de maus governantes e péssimos políticos que teimamos, nós mesmos!, em eleger regularmente (afora os intervalos autoritários em que eles se autoelegem; são os piores); e, claro, brilhantes exceções que têm conseguido sustar a derrocada final.

Pecado original

Desgraçadamente não vivemos um desses interregnos excepcionais. Ao contrário a pandemia apanhou-nos sob o mais desastrado, desastroso governo da história.

Porém não!, leitor, não atribua a Bolsonaro, mais consiga piorar tudo, o pecado original que nos deixou sem eira nem beira quando precisamos desesperadamente de vacinas e elas faltam-nos.

A serpente instalou-se em nosso paraíso muito antes, quando desistimos do desenvolvimento autóctone em vários setores; já comentei nesta coluna o desastre que nos foi imposto (e aceitamos) na indústria de transportes e na mais crítica, vital produção de equipamentos e insumos para a saúde.

Racionalismo e dependência

Os bem pensantes do liberalismo ortodoxo ‘justificam’ a opção em nome de um tal racionalismo de ‘mercado’, sacramentado pelo Consenso de Washington: cada nação especializa-se no que sabe e produz melhor, porque em tempos globalizados é mais barato importar quase tudo e concentrar-se em poucas vantagens comparativas.

Claro, algumas nações adrede desenvolvidas – e raras outras emergentes – conseguem excelência em muitos segmentos, sobretudo os mais decisivos, cabendo às demais seguir-lhes os passos, conformadas à dependência.

Superamos a primeira, …

A explosão de demanda por equipamentos de proteção individual começou a desvelar esse equívoco quando eles faltaram em todo o mundo, dramaticamente no Brasil. Soubemos, em pânico, que quase toda a oferta concentrava-se em poucos países, principalmente Índia e China, nações hostilizadas por Bolsonaro e seu lamentável ministro das Relações Exteriores.

Entretanto, foi possível superar a emergência porque a diversificada estrutura industrial brasileira, mesmo sucateada em sucessivos governos em nome daquela mesma especialização liberal-ortodoxa, soube reagir e adaptar linhas de produção para atender à demanda.

… não a segunda escassez

O mesmo não se deu com os insumos para a produção de medicamentos, especialmente imunizantes.

Aceitamos o papel de importadores, desprezamos a massa crítica em ciência e tecnologia de instituições de excelência (Butantã, Osvaldo Cruz, Ezequiel Dias, Evandro Chagas), assim como das universidades públicas, desestimuladas e impedidas de avançar em pesquisas pela carência de recursos – tudo agravado mui rapidamente nesses dois anos bolsonários; construir demora, destruir faz-se num átimo.

Sus, sucesso

Por isso vivemos um trágico paradoxo: temos um sistema público de saúde de extrema capilaridade e rica experiência, o Sus, que mesmo subfinanciado dá respostas eficazes a velhos e novos desafios.

Ele combate eficazmente antigas endemias (malária, mal de Chagas) e, por seu intermédio, o Programa Nacional de Imunização é sucesso mundialmente reconhecido: ele e seus antecessores, em três gerações erradicaram ou reduziram drasticamente a incidência de moléstias como varíola, lepra, sarampo, difteria, tuberculose, poliomielite, meningite…

Perdemos a vez

Em sucessivas, vitoriosas campanhas o Pni foi capaz de vacinar dois, três milhões de brasileiros por mês. Houvesse vacinas, apoio e coordenação do governo federal, estaríamos equiparados às nações que estão prestes a erradicar a Covid-19 e já reduzem significativamente as infecções e óbitos como Israel, Reino Unido e até os Eua, nos estados em que os governos negaram o negacionismo de Trump e apostaram em contenção de contágios, em seguida nas vacinas.

Surpresas

Sem falar nas surpreendentes vitórias da Nova Zelândia, Vietnã e… Cuba.

Sim, na Ilha que pouco aparece nos noticiários o governo e as pessoas seguiram as recomendações da Oms e obtiveram notável êxito em impedir contaminações, sobretudo mortes.

Cuba já produz sua própria vacina, em quantidades que permitem atender à demanda interna e ajudar nações menos afortunadas, sobretudo africanas com os quais mantém antiga cooperação.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)

Marco Antônio Pontes

([email protected] ou [email protected])