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Memória de elefante

8 de setembro, 2020

Não sei se tenho recebido com mais frequência, ou se tenho estado mais atenta às notificações de recordação do google fotos. Fato é que quase […]

Memória de elefante

Não sei se tenho recebido com mais frequência, ou se tenho estado mais atenta às notificações de recordação do google fotos. Fato é que quase todos os dias acordo com as lembranças de um passeio que já pensava não guardar na memória, com sorrisos de bebezinhos que já estão em plena adolescência e com toda sorte de penteados e comprimentos de cabelo que já tive; tudo isso, às vezes, usando a mesma camisa jeans que me acompanha há anos e com a qual por vezes estou vestida no exato momento em que fotos me visitam.

Delícia de cérebro auxiliar. Será mesmo? Hoje quando vi a camisa pela enésima vez, senti uma raivinha do meu descuido com o guarda-roupa. Raiva besta, eu sei. No fundo, sou orgulhosa por não sucumbir ao que gostamos de chamar de tendência. Mas mesmo besta a raiva me pôs a pensar no quão inconvenientes podem ser essas notificações. Saberia o senhor google dizer se hoje, amanhã, ou depois é um bom dia para me colocar em contato com as escolhas que fiz pra mim num passado distante ou recente?

Mas Roberta, entrar em contato com e repensar as nossas escolhas não é o convite que nos faz a psicanálise? Sim, é, precisamente. E quem disse que a gente gosta? Quem disse que a gente está pronto para responder a ele com boa vontade todos os dias? E aqui falo brincando sobre uma escolha qualquer. Mas não é só esse o risco que se corre quando é uma máquina a decidir o que dará as caras na tela do telefone. Esse a gente dá conta e até usa como oportunidade.

As notificações que me chamam a atenção, agora, parando para pensar, são aquelas que podem acordar uma situação traumática, um pontinho ainda machucado que precisa ser tratado com muito cuidado. Algo que poderia aparecer – e faria muito sentido – na análise, por exemplo, em ambiente seguro, no tempo de cada um. Sabe por que faz sentido de um jeito e de outro pode não fazer? É que o convite real não é da psicanálise, ele é nosso. Nós nos convidamos a repensar, revisitar, refazer quando o acordo que mantemos para esquecer já não funciona mais. É importante que remetente e destinatário do convite compartilhem o mesmo cpf para que as lembranças além de destino tenham função. Sei lá. Mal aí google. Boa semana, queridos!

 

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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