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Clubes e CBF começam hoje a elaborar fair play financeiro para tirar futebol brasileiro ‘do colapso’

11 de agosto, 2025 | Por: Agência O Globo

Grupo de trabalho tem até 90 dias para apresentar documento inicial

Nas últimas semanas, o noticiário esportivo foi tomado por casos que escancaram o desequilíbrio financeiro do futebol brasileiro. Jogadores do Atlético-MG notificaram o clube por atraso de salários, o Corinthians prometeu quitar R$ 12 milhões em premiações pendentes, e o Botafogo apresentou um balanço com aumento expressivo da dívida. Ao mesmo tempo, Palmeiras e Flamengo lucraram alto com vendas: R$ 195 milhões por Richard Ríos ao Benfica e R$ 163 milhões por Wesley para a Roma. Um contraste que, para especialistas, é um retrato do cenário em que convivem gestões bilionárias e clubes sufocados por dívidas.

É nesse ambiente que o debate sobre a criação de um fair play financeiro ganhou corpo nos últimos meses. Agora, a nova direção da CBF decidiu abraçar o tema e promete apresentar em até 90 dias um documento inicial, após reuniões com clubes, federações e consultoria que começam nesta segunda, no Rio. A expectativa é de que, desta vez, a discussão saia do papel.

O principal motivo é a bolha formada nos últimos anos. Para o vice-presidente da CBF, Ricardo Gluck, não há alternativa diante do endividamento generalizado — que atinge clubes da Série A à D — e do mercado inflacionado.

— Em 2019 (quando houve uma tentativa, fracassada), precisávamos alertar para um colapso, e o colapso aconteceu. Faltou coragem da CBF para implementar. Agora, é para mitigar o colapso e sair dele. Não sei se é o melhor momento, acho que já passou. Agora, todos entendem que é urgente — afirma Gluck, que também preside a Federação Paraense de Futebol e comandou o Paysandu.

Dados do site Convocados mostram que, de 2023 para 2024, as receitas totais da Série A e B cresceram 10% e 4,1%, respectivamente, mas as dívidas aumentaram 22%. Parte dessa escalada vem da pandemia, que deixou heranças como queda de receita e aumento de passivos. Ao mesmo tempo, clubes com gestão mais eficiente, como Palmeiras e Flamengo, se distanciaram da concorrência, investindo com receitas bilionárias.

A criação da SAF trouxe capital novo e ajudou a tornar outros clubes competitivos, mas também estimulou gastos acima da média. A chegada das bets, patrocinadoras máster de quase todos os times das Séries A e B, injetou cifras milionárias, elevando o patamar de arrecadação — e, em consequência, de despesas.

O resultado foi um salto no valor de contratações e salários, chegando próximo à segunda prateleira do futebol europeu, mesmo com a desvantagem cambial. Pressionados por torcida e conselhos, dirigentes assumiram dívidas para reforçar elencos de forma imediata, sem planejamento a longo prazo.

Para o economista Cesar Grafietti, autor do estudo do Convocados, é consenso que só um sistema externo de controle dará respaldo a medidas impopulares:

— Os clubes começaram a ver mais atrasos de pagamento nas contratações e isso começou a gerar problemas no sistema. Cuiabá, Fortaleza não recebem pagamentos dos grandes… Sozinho, o dirigente tem pouca força para dizer que não pode contratar, mas quando tem argumento adicional vai poder implantar o processo de reorganização mais tranquilamente — explica, lembrando que o endividamento é histórico nos clubes associativos, mas SAFs também não são garantia de boa gestão.

Escaldado, o Cuiabá preferiu não participar das reuniões (até o fim de julho eram 33 clubes e 10 federações inscritas). O presidente Cristiano Dresch se mantém cético quanto à condução pela CBF, embora reconheça a boa vontade de Samir Xaud em ouvir mais atores do futebol.

— O Cuiabá foi rebaixado ano passado numa disputa direta com o Corinthians, que se salvou porque contratou vários jogadores, mas não paga. O clube nos deve, deve ao Memphis (Depay), vai tomar transfer ban, mas continua utilizando esses jogadores. Jogou com o Ceará este ano e venceu. Se o Ceará for rebaixado, teve interferência direta do Corinthians utilizando um monte de jogadores que não são pagos. Se existissem regras, deveria estar na Série B e não na A. Se fosse igual ao Cuiabá, que só assume compromissos que pode cumprir, não estaria na primeira divisão — reclama. — Não me inscrevi para manter minha neutralidade, mas estou curioso.

Dresch defende que o controle seja feito por uma liga única, como na Europa. Mas no Brasil isso ainda é um impasse. Hoje, o futebol está dividido entre a Libra, que reúne clubes como Flamengo e Palmeiras, e a Liga Forte União (LFU), com Botafogo, Atlético-MG e outros. A rivalidade e os interesses individuais dificultam a criação de um regulamento único.

Mesmo assim, há sinais de cooperação. O presidente do Santos, Marcelo Teixeira, afirma que os blocos vêm negociando juntos em alguns contratos e que há maior consciência sobre a necessidade de profissionalização:

— Noto nas reuniões que há a conscientização de todos para irmos num caminho único. Mas não podemos criar critérios injustos. Imaginar que clubes pela tradição devam ter mais vantagens do que os clubes sem tanta tradição. Não jogamos sozinhos. Precisamos de todos fortes dentro de cada realidade — diz.

Desde que assumiu, Teixeira implantou no Santos um “fair play” interno, reduzindo a folha salarial e estabelecendo teto para vencimentos. A experiência europeia é vista como referência, mas não será copiada de forma literal. No Brasil, convivem clubes associativos, SAFs e empresas, cada um com peculiaridades. Além disso, o país está em um estágio diferente: na Inglaterra, o fair play já funciona há mais de dez anos e vem sendo aperfeiçoado.

O consenso é que a implantação no Brasil será um processo de médio a longo prazo. Mudanças expressivas nas finanças não devem ocorrer antes de dois anos. O foco inicial será reduzir dívidas e garantir que os clubes estejam adimplentes. Sanções mais duras, como rebaixamento, viriam em uma fase posterior.

— Nesse primeiro momento, o objetivo é que sejam adimplentes, garantir um sistema que paguem as dívidas. Não se pode focar em tirar as receitas deles. O que podemos adaptar lá de fora são as declarações bimensais de pagamentos, transfer ban, soluções financeiras junto ao CNRD — explica o advogado Hudson Paiva Jr, especialista em direito esportivo. — Se não fizer o fair play agora, a distância só vai aumentar. E não precisa de gastos absurdos para ser competitivo, como alguns clubes já mostraram.


BS20250811064515.1 – https://extra.globo.com/esporte/noticia/2025/08/em-meio-a-boom-das-dividas-clubes-e-cbf-comecam-hoje-a-elaborar-fair-play-financeiro-para-tirar-futebol-brasileiro-do-colapso.ghtml

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