Brasília Agora
Brasília Agora


COLUNAS

Como é bonita

8 de outubro, 2024

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

Como é bonita

O Google Fotos me lembrou ontem que fazem 4 anos que moro neste apartamento. Me entregou os registros do dia em que chegamos com as caixas de mudança, as meninas e eu. Fui um pouquinho pra trás na linha do tempo e vi as do dia que vim visitá-lo com a corretora. Éramos eu, elas e meu ex-marido. Primeiro ano de pandemia, todo mundo de máscara (disso não tem foto, mas eu lembro), aquele medo absurdo de dividir espaço com estranhos. Eles tiveram coragem de entrar no elevador, eu subi os oito andares pelas escadas. É linda a escada do prédio.

É lindo o prédio e também o apartamento, a luz das janelas, a avenida barulhenta lá embaixo, a cozinha meio de vovó, o olho mágico de portinha de onde se vê um olho de verdade – sem lente de aumento -, as cortinas das portas da varanda. É como sinto o lugar hoje. Mas naquele dia, não achei nada bonito não. Assinei o contrato porque estamos a uma quadra da escola das meninas, perto de uma estação de metrô, era o que cabia no orçamento e aceitava a comprovação de renda de uma profissional liberal.

Passamos a primeira semana fazendo as adaptações e na segunda, as meninas voltaram ao apartamento antigo para o que seria a primeira semana não de guarda compartilhada pra mim. Eu me senti meio sem chão, meio em silêncio demais, ficou tudo grande, o sofá, a mesa de jantar, a cozinha. Ficou tudo esquisito, as escadas, a luz das janelas, a avenida barulhenta. E eu fiz o que faço desde que me lembro: me matriculei em um curso.

Aprendi isso com meu pai. Ficou esquisita a vida, faz um curso. De qualquer coisa que seja. Só se matricula e vai. Eu já fiz espanhol, italiano, escultura, pintura de tela, de santo (!), de tecido, já fiz costura, bordado, pós-graduação a dar com pau que a vida não se cansa de ficar esquisita. Naquela semana, achei uma oficina de escrita que começaria no sábado mesmo (me dava um medo o sábado pós-divórcio) numa escola que vinha paquerando há um tempo. Não vi nem do que era. Paguei a matrícula.

Para meu total desconforto, chamava-se Cartas de amor. E os exercícios de todas as aulas seguintes eram, claro, cartas. Imprescindível que fossem de amor. Como se não pudesse ficar pior, a primeira delas deveria ter como destinatário seu noivo na véspera do dia do casamento. Eu ainda não tinha nem assinado o divórcio.

Tudo isso pra dizer que me alegrei com a lembrança do Google Fotos. O vazio e a esquisitice daqueles dias foi substituído por um tanto de vida. Amo minha casinha e escrevo esse texto hoje como uma carta de amor pra ela. Cada centímetro desse apartamento está tomado de sol e de vida. Minhas meninas cresceram um monte aqui, eu cresci um monte aqui. Quatro anos passam com um estalar de dedos, a vida passa com um estalar de dedos. E como é bonita essa danada.

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/