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VARIEDADES

Como o Mickey ‘paraguaio’ se tornou um sucesso que nem a Disney conseguiu conter

19 de setembro, 2024 / Por: Agência O Globo

No Paraguai, Mickey é um negócio familiar de embalagens de alimentos famosa com 90 anos que já enfrentou até a Suprema Corte do país

Como o Mickey ‘paraguaio’ se tornou um sucesso que nem a Disney conseguiu conter
Mickey paraguaio. Foto Reprodução

Um é um colosso que abrange parques temáticos, mercadorias e filmes, com 150 Oscars, 225 mil funcionários e uma receita anual de quase US$ 90 bilhões. O outro é uma empresa familiar de terceira geração com 280 trabalhadores que embala molho picante, soja, granulados coloridos, uma erva chamada cavalinha, seis variedades de panetone e sete tipos de sal para venda nos supermercados paraguaios.

No entanto, Mickey é um nome familiar que rivaliza com a Disney no pouco turístico país sul-americano de 6,1 milhões de habitantes. De fato, um visitante poderia supor que eles são parceiros. Há uniformes vermelhos usados pela equipe do Mickey. E seu slogan familiar: “A obrigação de ser bom!”.

Há ainda, acima de tudo, o rato de desenho animado — também chamado Mickey, e indistinguível do Mickey Mouse — cujas icônicas orelhas circulares adornam os portões da fábrica da empresa, seus caminhões e uma mascote muito requisitado em casamentos no Paraguai.

Mas não se engane, diz Viviana Blasco, de 51 anos, sentada entre papéis de escritório, camisetas e xícaras com a marca Mickey em Assunção, capital do Paraguai. Há o “Mickey da Disney” e o “Mickey paraguaio, nosso Mickey”, Blasco, uma entre cinco irmãos que gerenciam o negócio.

Ainda assim, se o Mickey paraguaio parece muito com o da Disney, pode não ser inteiramente uma coincidência. Os paraguaios são notoriamente criativos — alguns diriam ligeiramente desonestos — quando se trata de propriedade intelectual.

Fábricas produzem roupas falsificadas da Nike, Lacoste e Adidas. As autoridades educacionais do Paraguai advertiram no ano passado que a Harvard University Paraguay — em Ciudad del Este, a segunda maior cidade do país e um ponto quente de falsificação — estava concedendo diplomas médicos falsos. (A escola não tem nenhuma ligação com a mais famosa Universidade de Harvard.)

O Paraguai ocupa a 86ª posição entre 125 países em um índice compilado pela Property Rights Alliance, um instituto de pesquisa com sede em Washington, nos EUA, com uma pontuação de 1,7 em 10 para proteção de direitos autorais. Mas Mickey, a empresa da família Blasco, sobreviveu a múltiplos desafios legais movidos pela Disney. É também uma instituição amada que reflete a história peculiar, a gastronomia e a identidade nacional do Paraguai.

Segundo Viviana, a saga do Mickey começou em 1935. O Paraguai havia acabado de passar por um conflito mortal com a Bolívia pelo Chaco, um emaranhado de arbustos queimados pelo sol. Em um conflito anterior, a Guerra da Tríplice Aliança (1864-70), Argentina, Brasil e Uruguai haviam exterminado metade da população paraguaia.

O país ainda estava se recuperando de ambos. O avô de Viviana, Pascual, filho de imigrantes italianos, viu uma oportunidade de espalhar um pouco de alegria — e obter lucro. Ele abriu uma pequena loja que vendia frutas e sorvete caseiro. Ela se chamava Mickey. Mas de onde exatamente veio a ideia, diz Viviana, continua “um mistério.”

Mas Pascual, segundo costumava passar férias em Buenos Aires — a capital cosmopolita da Argentina, conhecida por cinemas exibindo filmes internacionais. Mickey Mouse estava fazendo sua estreia nas telonas, inclusive em “The Gallopin’ Gaucho” (1928).

A origem exata da ideia, diz Viviana, continua sendo “um mistério”. Mas Pascual, segundo ela, costumava passar férias em Buenos Aires, a capital cosmopolita da Argentina, conhecida pelos cinemas que exibem filmes internacionais. Mickey Mouse estava fazendo sua estreia nas telas de cinema, inclusive em The Gallopin’ Gaucho (O Gaúcho Galopante, em tradução livre, de 1928).

“Em uma de suas viagens, ele deve ter visto o famoso rato,” disse ela.

Independentemente de suas origens, Mickey fez sucesso. Alguns anos depois, Pascual abriu o Mickey Ice Cream Parlor, Café e Confeitaria. Em 1969, Mickey estava vendendo arroz, açúcar e bicarbonato de sódio em pacotes agora decorados com o rato homônimo. Em 1978, o negócio mudou-se para uma fábrica com um árvore de Natal iluminada de 62 metros de altura.

Viviana nega que sua família tenha se apropriado da marca da Disney. “Não a pegamos. Construímos uma marca ao longo de muitos anos. Mickey cresceu paralelamente à Walt Disney,” diz ela, tornando-se “profundamente implantado na cultura paraguaia.”

Essa afinidade era evidente em várias lojas que estocam produtos Mickey em Luque, um subúrbio operário de Assunção.

A mascote Mickey estava tirando fotos com os fãs, incluindo Lilian Pavón, 54 anos, uma enfermeira pediátrica. “Sou fã dos produtos Mickey,” ela disse, elogiando, em particular, as migalhas de pão e o orégano da empresa.

Mas seus sentimentos pelo roedor de feltro de 7 pés vão além dos condimentos, acrescentou ela, enquanto Mickey dava socos nos compradores e distribuía biscoitos em forma de anel chamados chipa. Na infância, ela e seus amigos acumulavam estojos, cadernos e adesivos do Mickey Mouse. Sonhavam em visitar a Disneylândia ou o Walt Disney World. Mas o custo de voar para Anaheim, Califórnia, ou Orlando, Flórida, tornava a peregrinação “impossível”, mesmo como adulta, disse Lilian.

“Estou feliz apenas por ver o Mickey em lugares como este,” ela acrescentou, em pé no corredor de carnes resfriadas do El Cacique, um supermercado de orçamento.

Mickey ressoa com o senso de nostalgia dos paraguaios, disse Euge Aquino, 41 anos, chef de TV e influenciadora de mídia social que usa seus ingredientes para fazer comidas reconfortantes como pastel mandi’o (empanadas de yuca e carne).

Convívio ‘pacífico’ entre Mickey da Walt Disney e Mickey ‘paraguaio’

Agora, um “convívio pacífico” reina entre Mickey e seu sósia dos Estados Unidos, disse Elba Rosa Britez, 72 anos, advogada da empresa menor. Essa trégua foi conquistada com dificuldade.

Em 1991, a Disney entrou com uma queixa de violação de marca registrada no Ministério de Negócios e Indústria do Paraguai, que foi rejeitada. A empresa então entrou com um processo, mas em 1995, um tribunal de marcas decidiu a favor do Mickey.

A Disney apelou novamente, levando a disputa ao tribunal mais alto do Paraguai. Lá, um juiz concordou que os paraguaios poderiam facilmente confundir o Mickey da Disney com o Mickey paraguaio. Mas a Disney não contava com uma “brecha legal,” explicou Britez.

A marca registrada Mickey estava registrada no Paraguai desde pelo menos 1956 — e os descendentes de Pascual haviam renovado-a desde então — sem protesto da multinacional.

Suprema Corte deu aval

Em 1998, a Suprema Corte do Paraguai emitiu sua decisão final. Através de décadas de uso ininterrupto, Mickey adquiriu o direito de ser Mickey.

Durante um feriado nacional recente, o homem dentro do traje de mascote do Mickey estava se aquecendo em um contêiner metálico com ar-condicionado dentro da fábrica da empresa, que serve como seu escritório. Viviana pediu ao The New York Times para manter a identidade de Mickey em segredo para o público paraguaio, a fim de preservar um pouco da “mágica” por trás da mascote.

“Ver os sorrisos no rosto das crianças é impagável,” disse a mascote, antes de ajustar sua gravata borboleta e sair para seu público adorador. “Mickey!” eles gritaram. “Mickey!”

Mickey posou para fotos, espalhou doces nos carrinhos de bebê e passou pipoca pelas janelas dos carros para crianças de olhos arregalados. Motoristas de ônibus buzinavam suas buzinas. Uma equipe de construção de estradas acenava. Um trabalhador inclinou-se para fora de um caminhão de lixo, ergueu o punho e gritou: “Ei, Mickey!”

Alguns que estavam na fila para encontrar a mascote disseram que o triunfo de David contra Golias do Mickey contra a Disney os encheu de orgulho nacional.

“É bom,” riu Maria del Mar Cáceres, 25 anos, uma mãe que fica em casa. “Pelo menos ganhamos em alguma coisa.”


BS20240919154718.1 – https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/09/19/como-o-mickey-paraguaio-se-tornou-um-sucesso-que-nem-a-disney-conseguiu-conter.ghtml