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8 de junho, 2021

Crises, militares ou não, reeditadas ou atraídas   Militares em crise Bolsonaro já provocara uma crise militar ao demitir o ministro da Defesa que se […]

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Crises, militares ou não, reeditadas ou atraídas

 

Militares em crise

Bolsonaro já provocara uma crise militar ao demitir o ministro da Defesa que se recusara induzir seus subordinados a apoiá-lo explicitamente nas investidas, que promove desde sempre, contra a democracia.

Achou pouco e reincidiu ao convocar seu dócil, obediente “gordinho” (a indelicadeza é dele), um general em serviço ativo e ex-ministro desastrado da Saúde a manifestação nitidamente política, há duas semanas.

A agudizar o problema, impediu que o comando do Exército aplicasse ao transgressor as medidas disciplinares que a situação exigiu – a exigência assenta-se em avaliação de juristas, de militares da ativa que só falam em off para não incidir na mesma transgressão e até do general vice-presidente.

Instabilidade crônica

Os leitores mais jovens terão pouca ou nenhuma experiência na observação de crises militares (aplaudo-lhes a sorte…) e por isso estarão intrigados com situações, hoje inadmissíveis, em que as Forças Armadas sejam instadas a afastar-se de suas funções no serviço do estado e patrocinar interesses de eventuais governantes.

Em seu benefício pode ser útil relatar episódios de um tempo de instabilidade crônica, no qual as crises emendavam-se em sucessivos traumas e fraturas das instituições.

Contestação reincidente

O relato começa em 31 de outubro de 1955 e segue até o dia 11 do novembro seguinte, mas alguns antecedentes ajudarão a melhor compreendê-lo.

Pouco mais de um ano transcorrera desde a dramática conclusão da crise antecedente com o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em seus aposentos no Palácio do Catete. O gesto extremo interrompeu o golpe militar em curso e ensejou a eleição cerca de um ano depois de Juscelino Kubitschek, aliado de Getúlio e, supunham os adversários, continuador de sua obra.

Inconformados, os militares derrotados em 1954 reagruparam-se para contestar o resultado das eleições, a alegar que o mais votado não conquistara maioria absoluta; pouco lhes importava que a lei então vigente não o exigisse.

Síntese golpista

Liderava os golpistas um civil, Carlos Lacerda, jornalista, dono de jornal e deputado federal, brilhante intelectual e tribuno inflamado que meses antes sintetizara as intenções do grupo em admirável e iníquo discurso de que até hoje me lembro:

“O senhor Kubitschek não há de ser candidato; candidato, não pode eleger-se; eleito, ter-se-á que impedir-lhe a posse; empossado, será deposto.”

Golpismo impune

Foi em tal contexto que naquele 31 de outubro de 1955 o coronel Jurandyr de Bizarria Mamede, até então desconhecido do público e imprensa mas intelectual militar prestigiado entre os pares, pronunciou furioso discurso (na presença do ministro do Exército, então dito ‘da Guerra’) a exigir que se impedisse a posse do candidato legitimamente eleito semanas antes.

O general Henrique Lott, o ministro, mandou punir o coronel golpista, foi desautorizado pelo presidente da República e pediu demissão.

Dupla deposição

Os insurretos mal se vangloriavam da vitória quando houve nova reversão; foi a vez de Lott reagrupar os liderados e declarar “retorno aos quadros institucionais vigentes”, a significar deposição de dois presidentes da República de uma só vez: um, enfermo recém-licenciado, subitamente curou-se para reassumir e dar sequência ao golpe e o substituto, apanhado a navegar num cruzador com os chefes da Marinha sublevados em risível busca de adesões em outros portos e guarnições.

Logo o Congresso coonestaria o golpe contra o golpe, confirmaria o impedimento dos presidentes-golpistas e reafirmaria a data de posse do presidente eleito.

Semelhanças e diferenças

E por que mesmo? o colunista lembra esses fatos? – perguntaria o leitor.

Porque as circunstâncias lembram as da atual crise militar e as diferenças entre os respectivos episódios, antes de afastar analogias, sugerem examiná-las acuradamente.

Veja-se, primeiro, a óbvia semelhança: em ambos os casos o comando militar pretendeu punir um oficial transgressor e foi obstado pelo presidente da República.

Diversa é a cena política: em 1955 buscava-se recompor instituições flageladas desde o ano anterior e sob alto risco; em 2021 o estado de direito ostenta solidez mas sofre insistentes ataques da extrema-direita parafascista.

Diferenças e semelhanças

Nesse vai-e-vem de insanidades há outra coincidência e, nela, radical diferença: em ambos os casos os titulares do Poder Executivo apoiavam a contestação da ordem democrática, porém na risível incursão naval de 1955 os presidentes golpistas eram fracos, quase marionetes dos civis e militares insurretos enquanto hoje, nestes tristes tempos, veleidades antidemocráticas carecem de apoios e só encontram guarida no presidente ao qual ainda resta, se não legitimidade que esgarçou no infame exercício do poder, ainda considerável apoio dos mais empedernidos reacionários de sua tropa de choque.

Deu tudo errado

Coincidências ou não entre esses fatos e fenômenos políticos de graves implicações na caserna, a eles sobrepõe-se a tragédia que resultou das crises militares crônicas do século xx, a recomendar aos atores de hoje exame acurado e muita precaução.

O irridentismo do coronel Mamede e seus aliados deu errado, o presidente que desejavam impedir empossou-se e cobriu-se de glórias no mandato. No entanto, na década seguinte os mesmos inconformados recrudesceram e golpearam fundamente a democracia.

Sobrevieram duas décadas de obscurantismo – um átimo na história das gentes, tempo demais para quem as sofreu.

Golpistas deserdados

Hoje os herdeiros do golpismo do século passado, carentes de uma extrema-direita intelectualizada como a que emprestava substância ideológica aos militares de então, contam só com Bolsonaro, os filhos ignorantes como ele e agregados igualmente desprezíveis – como o pseudofilósofo que mora na Virgínia – para liderar os minoritários, ainda assim numerosos e aguerridos militantes do atraso.

No Congresso eles precisam comprar sustentação de ajuntamentos parlamentares cuja lealdade não vale um pequi roído. Na área econômica já se lhes reduz a adesão do grande capital, obtida na campanha de 2018 mediante promessas de menos estado e mais empresas predadoras, sob intermediação do ‘Posto Ipiranga’ que prometia o que nunca teve pra entregar.

Benesses insuficientes

No front militar o presidente tem-se havido melhor (até agora) mas dependura o futuro na lealdade de gente como Pazuello, o general que se agachou às suas ordens.

Obviamente Bolsonaro conta com outros, também subservientes a trocar respaldo por sinecuras na estrutura estatal. Entretanto, nem as túmidas tetas do estado produzem leite suficiente para amamentar tantos famintos de status, privilégios e rendas, do que resultam disputas, ciúmes e frustrações.

Os frustrados acabarão por somar-se à maioria que não compactua com o aparelhamento das Forças Armadas e dessa reacomodacão de tendências haverá de resultar, ao fim e ao cabo, um realinhamento militar em favor do profissionalismo, apartidário e infenso a ‘bolsonarices’.

Enquadrados à força

Enquanto persiste o silêncio dos bons, o ex-tenente tem apoios suficientes nos quartéis para chamar de ‘seu’ o Exército, sem ser contestado nas ameaças de usá-lo como milícia particular – por exemplo para enquadrar governadores, prefeitos e impedi-los de adotar medidas preventivas à evolução da covid-19. E ainda para respaldar, por omissão ante os estímulos de seus seguidores nas redes de mídia, a politização em seu favor das forças de segurança pública.

O sangrento episódio de sábado, 29.05 no Recife, em que policiais militares investiram sem razão contra manifestantes pacíficos, ainda não foi totalmente esclarecido mas certo repercute a violência apregoada pelo presidente e sua turma.

Crise atraída

Só pra não perder o costume Bolsonaro fez questão de atrair para si uma nova crise, essa provocada pela Confederação Brasileira de Futebol que decidiu realizar aqui uma extemporânea Copa América em tempos de pandemia em aceleração na América do Sul. A péssima ideia tem sido glosada nas mesas de bar virtuais (é o que nos resta…) como o ato do sujeito que atravessa a rua para pisar em casca de banana na calçada do outro lado.

Fascismo ao lado

Pinço frases de artigo de Paulo Gustavo na Revista Será? (28.05), muito úteis para explicar a quadra infausta que vivemos; ele comenta a obra de Erich Fromm, especialmente O medo à liberdade:

“Outrora, tivemos um marechal de ferro, Floriano Peixoto, hoje temos um capitão enferrujado; o Brasil não ultrapassa a idade do ferro…

[…] Daí que ainda hoje exista entre nós um fascismo que não ousa dizer seu nome, um claro medo à liberdade, […] vista como um luxo para poucos. Nosso fascismo de tempos em tempos volta trazendo em seu bojo, como é o caso dos dias atuais, a recusa da modernidade, o irracionalismo e a violência.

[…] O ‘não’ à liberdade tem nomes – medo, neurose – e o fascismo, disfarçado de autoridade, mora ao lado.”

Projeto 2022

Almar Siqueira, brilhante colega de meus tempos no Granbery (Juiz de Fora, fim dos anos 1950), comenta considerações desta coluna na semana passada sobre a conjuntura política e possíveis desdobramentos no ano próximo, o das eleições nacionais:

– A terceira via seria a melhor solução. Uma via de união nacional contra os extremos. Talvez Tasso Jereissati seja uma opção. Que acha?

Não seria tão assertivo, amigo Almar, mesmo que admire o senador Jereissati. Com ele ou nomes alternativos – quase todos os até agora sugeridos, ousaria afirmar – o mais importante em outubro de 2022 será livrarmo-nos de Bolsonaro; isso se não o pudermos exorcismar antes.

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])