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Comunicação & Problemas

14 de junho, 2021

O estadista de nosso tempo   Marco Maciel Ele gostava de citar Juscelino: “O otimista pode até perder, mas o pessimista já começa derrotado.” Talvez […]

Comunicação & Problemas

O estadista de nosso tempo

 

Marco Maciel

Ele gostava de citar Juscelino: “O otimista pode até perder, mas o pessimista já começa derrotado.”

Talvez a profissão de fé que subjaz à citação do político que admirava esteja entre as explicações da generosa aposta de Marco Antônio de Oliveira Maciel na política – e não vou destratar o vernáculo para qualificar a política com um desnecessário ‘pê’ maiúsculo, nem mesmo discorrer sobre as características de uma alegada ‘boa política’; Marco Maciel personificou a política no que tem de mais nobre e fê-lo a partir de sua crença nas pessoas, na quase infinita capacidade do ser humano de superar dificuldades e superar-se quando se dispõe a confiar no próximo, ouvi-lo, ser humilde na conjunção de opiniões e respeitoso na divergência. E se um jovem político pedisse a este velho escriba indicação de como praticar ‘boa política’, dir-lhe-ia apenas que em cada caso imagine o que Marco Maciel faria em seu lugar, siga-lhe o exemplo e assim agirá sempre bem.

Ele era profundamente cristão, o que em parte explicaria seu irrestrito respeito – amor – ao ser humano; em parte, digo, porque Marco não o fazia em obediência a mandamentos divinos, emulações de santidade; a solidariedade que lhe informou a vida era essencialmente humana, fruto da aceitação incondicional das pessoas, tomadas em sua totalidade. No que, ao fim e ao cabo, cultivava a religião conforme o sentido mais puro e original da palavra: re-ligar o homem a Deus e no caminha cada qual a seu semelhante. Não praticava uma religião de exterioridades, assumia-a no íntimo do ser e se obedecia aos ritos de sua Igreja, desconfio de que se movesse mais pela comunhão com as pessoas, unidas pelo menos nas manifestações de crença.

Também cristãs eram as motivações maiores de sua carreira. Moderado conservador em política como na fé (se bem pode avaliar este agnóstico observador), mais de uma vez o ouvi citar, inclusive em importante pronunciamento político, uma expressão de Paulo vi – o discreto revolucionário cardeal Giuseppe Montini – ao defender justo projeto para o crescimento das nações: “Um desenvolvimento que contemple o homem todo e todos os homens.”

Certa vez conversávamos, um pequeno grupo de amigos e assessores com o então senador, sobre não me lembro que erros graves, absurdos cometidos por alguém com poder suficiente de potenciar-lhes os efeitos perversos sobre a vida das pessoas – assim as ‘bolsonarices’ de então. Meio que a fazer graça, citei uma das boutades preferidas de intelectuais pessimistas e mal-humorados, de H. L. Menken a Paulo Francis ou José Guilherme Merquior: – O ser humano é inviável. Quase a ignorar o humor, com seriedade amenizada pelo sorriso largo que sempre brindou aos amigos, ele fez rápida mas eloquente refutação da ‘tese’ e concluiu, pragmático (tento recuperar o sentido da frase, se não a forma): – Pode-se até aproveitar essa discussão para ilustrar projetos de desenvolvimento revestidos de humanidade.

Falei de humor, e esse não era componente habitual do discurso político de Maciel. Não que fosse sisudo, zangado no trato com as pessoas, o respeito e natural afeto externava-os na extrema cordialidade de gestos, palavras e no semblante afável; mas em contatos e manifestações oficiais preferia a seriedade, discrição e escassos arroubos retóricos.

Entretanto, não se furtava a eventuais brincadeiras com amigos e assessores próximos. Como na vez em que, ministro do Gabinete Civil da Presidência, ligou para minha casa numa ensolarada manhã de domingo e foi atendido por nossa dedicada Maria, então como antes e sempre mais amiga que empregada. Identificou-se, pediu que me chamasse, ela disse que não podia: “Ele está na piscina com as meninas [minhas filhas crianças], não gosta que o chame lá.” “Então, por favor, quando puder falar com ele peça que me telefone”. Demorei-me na brincadeira e Maria, atarefada com o almoço, esqueceu o recado que só me transmitiu umas três horas depois. Liguei de volta, ele só queria uma informação e após recebê-la anunciou, fingida solenidade na voz: “Aproveito para um comunicado [pausa, que não me atrevi a interromper]: vou requisitar a dona Maria para meu Gabinete no Palácio. Ela protege muito bem a privacidade do chefe.”

Deixo pra depois outras lembranças pessoais, precisamos falar é da importância política da persona ímpar, quase uma instituição que foi Marco Antônio; permito-me mais esta intimidade, tratamento que só usavam os amigos da juventude, sorte que não tive; mas enquanto o jornalista reverencia o estadista, este humilde assessor-amigo sente-se muito próximo e quer chorar a perda, neste tempo de tantas perdas.

Mas ainda não se passaram 24 horas do desenlace e já amiúdam elegias, algumas precisas e oportunas, outras nem tanto – inevitável, um ou outro travo de amargura.

Original, a destacar faceta menos conhecida de Marco foi a declaração do ministro do Stf Alexandre de Moraes a lembrar-lhe os sólidos conhecimentos jurídicos. Sóbrio, correto nos elogios esteve o presidente do Tribunal, Luís Fux, assim como seu homólogo do Poder Legislativo e o presidente da Câmara dos Deputados.

Michel Temer foi incisivo ao realçar-lhe as qualidades de negociador. Não sei por que faltaram neste sábado depoimentos dos ex-presidentes Sarney, Collor, Lula e Dilma.

Fernando Henrique lembrou menos a convivência de décadas no Congresso e outros lócus políticos que os oito anos de parceria com seu vice: autocentrado como sempre, o ex-presidente destacou-lhe a lealdade (“Eu viajava tranquilo, ele prestava contas, telefonava”). Sim, lealdade era virtude destacada de Marco mas não foi a mais importante naquela quadra; Fernando deve-lhe muito mais, por exemplo a eficaz atuação em negociações políticas para as quais não tinha apetite nem aptidão, a prevenir crises e resolver no diálogo as que não era possível evitar.

Mais infeliz foi a fala do presidente do Democratas (Dem), nome e sigla esdrúxula (como outros, na moda) com que se rebatizou o partido originalmente denominado Pfl, da Frente Liberal. Antônio Carlos Magalhães Neto qualificou-o “um dos fundadores” e “um dos principais líderes” de seu partido, o que lhe falseia a história pregressa e desmerece a atual.

Marco Maciel foi ‘o’ fundador, criador e articulador da Frente Liberal quando se declarou dissidente do Pds, o partido dos governos militares ao qual se filiara ‘por gravidade’, puxado pelas injunções da política regional. A dissidência logo atraiu deputados e senadores governistas que preferiram a democracia, depois o vice-presidente Aureliano Chaves e ao fim do processo até José Sarney, presidente do Pds.

Seguiram-se as negociações com o Pmdb, o partido de oposição: de um lado Maciel e meia dúzia de seguidores então pouco expressivos politicamente, do outro Ulisses Guimarães, Tancredo Neves e a numerosa retaguarda do partido em ascensão. Logo entre eles já não haveria ‘lados’, uniram-se em chapa comum para derrotar a ditadura em seu próprio campo, o ‘colégio eleitoral’ (senadores, deputados federais e representantes dos legislativos estaduais) com que pretendia perpetuar-se.

Acertou-se que à oposição tradicional caberia a ‘cabeça-de-chapa’, aos dissidentes a candidatura à Vice-Presidência; Marco Maciel, candidato natural, abriu mão em favor de José Sarney, a contemplar conveniências eleitorais: parecia difícil mobilizar ‘eleitores’ suficientes num quadro de ditatura ainda poderosa sob general-presidente de amplos e discricionários poderes.

É essa a história, ou melhor, historiografia a melhor documentar-se e compreender antes de elevar-se à condição maior de história, na qual Marco Antônio Maciel terá papel mais destacado que o atribuído pelo desinformado presidente do partido que fundou.

Só por humanidade, débil e precária humanidade permiti-me intromissões pessoais na homenagem, que precisa ser grandiosa e também impessoal, ao estadista brasileiro de nosso tempo, quase instituição republicana. Sua imagem e exemplo presidirão a redenção da política como a exercitava, discreto e sereno campeão dos consensos e admissão democrática de dissensos quando foi essa a alternativa que melhor serviu à solução dos conflitos.

A trajetória, imagem e exemplo de Marco Antônio de Oliveira Maciel pairam como emblemas sobre estes polarizados tempos de antipolítica, como um severo mas gentil mestre-escola que chama à razão os garotos rebeldes. Tenham juízo!, eis a mensagem que enviaria aos políticos que sabem e preferem negociar eficazmente. Do contrário reincidiremos em inútil dicotomia, ‘nós-contra-eles’ em pernicioso processo que leva a lugar nenhum.

Fez muita falta, na prevenção de nossas recentes tragédias políticas, o apóstolo do diálogo e convencimento, moderação, compreensão, infelizmente afastado das lides por insidiosa moléstia. Torçamos por que seu legado inspire e motive a sociedade e seus representantes na conformação de novas e melhores práticas políticas.

A notícia da morte de Marco Antônio atingiu-me como um soco no plexo solar, chegada no meio da tarde deste sábado pelo rádio do carro pouco antes de encontrar a filha caçula e a neta adolescente para um programa em família. Parei, respirei fundo, tentei recompor-me e decidi seguir a vida sem revelar às minhas meninas o quanto me abalara. E de fato a vida seguiu, após o encontro assisti aos noticiários na tv e internet, tudo absorvido e assimilado comecei a escrever este dorido depoimento que me saiu aos borbotões, sem tempo de pensar nem avaliar a qualidade de minhas lembranças e conjeturas.

Melhor assim, mesmo que eventualmente precise rever informações quiçá inexatas e opiniões certamente precipitadas.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])