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31 de janeiro, 2025

Não vai ter golpe, nem precisa – sob o centrão, os generais…   Devaneios golpistas Quem acredita na democracia, no estado de direito e acompanha a cena política brasileira sabe muito bem que Jair Messias Bolsonaro é o a adversário a combater. Pudesse, ele teria chegado ao poder a seu modo: embalado num golpe de …

Não vai ter golpe, nem precisa – sob o centrão, os generais…

 

Devaneios golpistas

Quem acredita na democracia, no estado de direito e acompanha a cena política brasileira sabe muito bem que Jair Messias Bolsonaro é o a adversário a combater. Pudesse, ele teria chegado ao poder a seu modo: embalado num golpe de estado ‘clássico’, daqueles abundantes em nossa América nos três primeiros quartos do século xx – com blindados e tropas na rua para fechar o Congresso, destituir ou manietar o Judiciário e calar pela violência as vozes contrárias.

Surpresa e aprendizado

Em vez disso, surfou ondas atípicas naquela campanha eleitoral também avessa à normalidade, da qual incialmente pretendia não mais que um alento à carreira parlamentar presa aos mais escuros desvãos do baixo-clero e à qual já faltavam votos, ainda mais se os dividia com a famiglia.

Acabou ganhando a Presidência, surpresa até pra ele.

Se alguma coisa aprendeu desde então (sei; ele é tosco, mas algo terá penetrado aquela cabeça pétrea) é que precisa nem de um cabo e dois soldados num jipe para minar as instituições: basta-lhe insistir no que tem feito à margem do estado de direito, à sombra de aliados de ocasião pagos regiamente com nosso dinheiro – e em algum tempo obterá o mesmo efeito.

Salvar o possível

De concessão em concessão dos donos do dinheiro grosso, detentores do poder de fato no sistema capitalista, ele descumpre as promessas de deixar rolar o fundamental-liberalismo econômico, com alegre conivência de seu ex-posto Ipiranga já viciado no gostinho do mando, mesmo ilusório. Ainda assim o grande capital não lhe retira o apoio, na vã de esperança de virar o jogo; não vão conseguir, esses neófitos em política, embora veteranos em amealhar fortunas à margem das normas tributárias.

Ou talvez, imediatistas, ainda esperem salvar uns ganhos extras enquanto naufraga o Titanic em que embarcaram– só em parte vai dar certo; se der.

Centrão movediço

Outro e igualmente decisivo apoio Bolsonaro encontrou no centrão. Se não pode fincar pilares na areia movediça sobre a qual se exercita esse agrupamento amorfo e mutante, vale-se por enquanto das largas sapatas em que se amontoam centenas de políticos tangidos por um punhado de chefes espertos cuja coesão, mesmo duvidosa, parece suficiente para impedir que se afundem todos no terreno instável; no caso, a quantidade compensa por um tempo a (falta de) qualidade.

O equilíbrio é provisório, mas o Planalto acredita dê pro gasto até que se revertam a seu favor as expectativas – quiçá por rápida e significante recuperação da economia e-ou avanço da vacinação que contenha a pandemia, isso apesar do negacionismo que o capo espera seja esquecido.

Duas ou três coisas

É demasiado precário, este equilíbrio – objetará um de meus argutos leitores. Concordo, mas é o que o presidente tem para o momento. E aqui vale recordar duas ou três coisas que a gente sabe do centrão.

O apelido “Centrão”, com inicial maiúscula e alguma respeitabilidade, surgiu no Congresso Constituinte (1987–88) para designar um grupo de parlamentares de partidos vários que se opunha aos reacionários que tentavam incluir na Carta preceitos da recém falecida ditadura, mas tampouco encampava os arroubos radicais de parte da esquerda, mais numerosa que seus simétricos no extremismo porém longe de constituir maioria.

Moderação e consensos

Ainda que abrigasse interesses pouco republicanos, por exemplo de capitalistas selvagens infensos a quaisquer políticas sociais e até – indignidade! – a defesa de torturadores que serviram à extinta ditadura, impedindo a revisão dos termos de uma anistia anomalamente “recíproca”(?!), aquele Centrão (mantenho a ‘caixa alta’ inicial) erigiu-se fator de moderação e consensos num debate difícil, frequentemente a ameaçar impasses que retardariam (quem sabe quanto tempo?) o advento da nova Constituição. 

Tudo isso num quadro tingido de incertezas quanto à solidez da (re)nascente democracia, ameaçada por anúncios de recrudescimento do autoritarismo.

Razão desfigurada

Não por acaso naquele Centrão convivia um largo espectro ideológico, da direita moderada ou nem tanto à esquerda idem, ibidem e sob hegemonia de um centro típico, ainda não esfacelado pela balbúrdia conceitual que o desfiguraria e com ele a racionalidade política de que até hoje carecemos.

Assim ele foi valioso, entre calços e percalços, para levar a bom termo a feitura da Constituição que Ulysses Guimarães batizaria “Cidadã” – ele próprio, o “Senhor Diretas”, um centrista que se sobrepôs ao Centrão.

Sem líderes, alternativas…

Aprovada a Carta, convocada em 1989 a primeira eleição direta para presidente da República desde 1960 (penoso hiato de 29 anos!), o Centrão praticamente se desfez.

Sem liderança clara nem projeto de poder, portanto alternativas a oferecer à nação, dividiu-se entre vários candidatos que tentavam incorporar o centro político-ideológico, todos mal sucedidos em campanha tão atípica quanto a que nos infelicitaria, trágica coincidência, outras três décadas passadas.

E aquele resultado, favorável Collor, seria quase tão catastrófico quanto o que elegeu Bolsonaro.

…nem inicial maiúscula

Parte da turma – a pior parte – bem tentou reagrupar-se em torno do ensandecido “caçador de marajás” (e das propinas distribuídas pelo tesoureiro Pc Farias) mas sequer teve tempo de mostrar a que veio, nem acolhida eficaz na inepta entourage de Fernando Collor de Melo, que acabou denunciado pelo próprio irmão (ah!, essas afoitas famílias de presidentes esdrúxulos…).

Um centrão já destituído de vestígios republicanos (e da inicial maiúscula) chegou a ensaiar aproximação com Itamar Franco; anulou-se na oposição para tentar a volta por cima ao oferecer-lhe, na bandeja, a reeleição que o austero presidente recusou in limine.

Anões e gigantes

Nada como um período presidencial após o outro – tal haveria de ser à época o lema de um ressurreto centrão, de líderes anões e base a agigantar-se.

Curioso é que essa base incharia ainda mais no governo do Psdb, contraditoriamente um partido de prestigiosos ‘quadros’ no Congresso, legislativos e executivos estaduais, municipais e no universo acadêmico e cultural – a começar por Fernando Henrique Cardoso, seu principal líder que se elegeria presidente da esteira do Plano Real de Itamar e graças a seu apoio.

De carteirinha

Diversamente da primeira investida, repelida por Itamar Franco, na segunda o centrão encontrou guarida justo na intelectualidade supostamente de esquerda do Psdb, empenhada em aprovar emenda constitucional que permitiria a reeleição de presidente, governadores e prefeitos – desastre institucional do qual ainda não nos recuperamos.

‘Naturalmente’ o centrão foi recompensado sob os dois mandatos tucanos, a cuja base parlamentar integrou-se como se fora, desde sempre, social-democrata de carteirinha.

Sócios do poder

Já então o grupo estruturara-se o bastante para gerir sua parte nos ganhos da aliança: uma intensa ocupação de cargos na máquina governamental e correspondente participação no destino de emendas ao orçamento, a contemplar-lhe as bases regionais.

Ao contrário do que imaginam os críticos menos informados desse comércio de cargos e nacos do orçamento, as vantagens assim obtidas não costumam concretizar-se em depósitos nas contas bancárias dos políticos. O domínio de funções executivas, na administração direta e nas poderosas empresas estatais, empresta aos sócios parlamentares sobretudo poder político, embora não raro enseje prêmios mais diretos, sonantes…

Tudo (quase) certo

De igual forma as verbas garantidas pelas tais emendas não costumam ser embolsadas pelos deputados e senadores que as patrocinam. O buraco é mais embaixo: os recursos encaminham-se a ações governamentais de fato necessárias e reclamadas pelos eleitores, mas elas só acontecem nas regiões em que são votados os autores das emendas, precioso benefício aos prefeitos, vereadores e deputados estaduais com que firmam parcerias.

Sem contar que eventualmente se permitam, os felizardos, abastecer um caixa 2 de campanha aqui, privilegiar a empresinha da família ali… – afinal, ninguém é de ferro.

Aval a Lula

Assim o centrão cresceu, meio que se arrumou internamente e na arrumação tornou-se parceiro indispensável de sucessivos de governos, colchão de ar a amortecer choques e fiel da balança entre situação e oposição no Congresso Nacional.

Encorpado no interregno tucano, foi sábio (sabido!) ao detectar mudança dos ventos e deu aval decisivo àquela carta de Lula ao povo brasileiro, cujo real destinatário foi o oligopólio financeiro que precisava ser tranquilizado antes das eleições – do contrário, nada de Pt no poder.

Presidente acomodado…

Então chegamos ao atual estado das artes: um grupão heterogêneo mas minimamente articulado reúne o majoritário baixo-clero congressual cujos líderes, desde Eduardo Cunha, são cardeais de fato que dispensam a púrpura e demais pompa e circunstância em favor do pragmatismo, expresso no toma-lá,-dá-cá da política de resultados – e bota resultado nisso!

Nos mandatos de Lula o centrão aprimorou a camaleônica adaptação, chegou a adotar palavras de ordem ‘de esquerda’ (!!!) ao compor a base de apoio do petismo; dominou-a no período Dilma e ampliou a hegemonia quando protegeu Temer das flechadas daquele procurador insistente.

E após negaças para Trump ver, o machão Bolsonaro acomodou-se docilmente ao comando melífluo de seus chefes.

…ao poder maior

Agora o centrão está no auge do poder, mesmo camuflado.

Nas mãos de um de seus líderes está a chave da gaveta com os pedidos de impeachment. Outras, especialmente pressurosas, assumem as rédeas do cotidiano da administração pública, inclusive as que levam aos cofres do Tesouro.

Uma das funções do grupo é aparar no peito aqueles pedidos, outra é ajudar o procurador-geral a proteger os filhos enrolados do presidente, que atribui a uma terceira a terraplanagem dos caminhos da reeleição.

Tudo, como se vê, a depender da boa vontade daquela agigantada manada parlamentar tangida por um punhado de líderes sagazes, ou nada feito: sossego dos rebentos, reeleição, mesmo o atual mandato – vai tudo pro espaço se o centrão deixar.

Vencedores e vencidos

Nesse processo a “velha política” denunciada por Bolsonaro na campanha eleitoral e mil vezes renegada no início de seu governo acaba por condicionar – quem diria? – sua estratégia de manutenção do poder.

A restauração do ‘toma-lá,-dá-cá’ acentua-se com a entrega do principal Ministério, o do Gabinete Civil da Presidência, ao mais influente líder do centrão, o que significa repassar-lhe o controle de fato da administração, ainda mais sob um chefe do Executivo inepto, ignorante e incapaz.

E resulta, ao mesmo tempo, em derrota cabal de outro grupo de sustentação do governo, o dos generais ditos ‘amigos’ do presidente e sua turma.

Haverá revanche?

É essa uma reviravolta importante no núcleo central do governo, tanto mais drástica se finalizada com a demissão e remanejamento de emblemático general, dito o mais amigo de Bolsonaro, que esteve pouco à vontade ao ceder (compulsoriamente) seu lugar a um político de velha cepa fisiológica.

Tudo parece indicar, conforme as análises dominantes na imprensa que os generais bolsominions, organizados para tutelar o ex-tenente enquanto se apossavam dos cargos-chave na administração federal, perderam uma batalha decisiva e justo para os políticos que mais abominam.

Os próximos meses sob a égide do centrão mostrarão se a virada é definitiva ou se os generais terão direito a revanche.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])

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