Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960) Marco Antônio Pontes ([email protected] ou [email protected])
Comunicação & Problemas
31 de janeiro, 2025As férias forçadas do velho escriba Colunista em férias Os leitores haverão de perdoar-me essas férias sem prévio aviso, ademais compulsórias: foram quase três semanas gozadas (por assim dizer) mediante imposição de um gira-mundos vindo lá de onde vem o sol que se dispôs a tocar terror e inventar moda no resto do planeta, com …
As férias forçadas do velho escriba
Colunista em férias
Os leitores haverão de perdoar-me essas férias sem prévio aviso, ademais compulsórias: foram quase três semanas gozadas (por assim dizer) mediante imposição de um gira-mundos vindo lá de onde vem o sol que se dispôs a tocar terror e inventar moda no resto do planeta, com especial ênfase nas duas maiores nações deste ainda chamado Novo Mundo.
(Este velho escriba sabe que vai adiantar nada mas protesta assim mesmo; por que? essas férias à revelia?, cominadas logo a quem compõe ininterruptamente estas mal traçadas desde 1985, quando o jornalista Ronaldo Junqueira – saudades!… – estabeleceu que faria crítica de imprensa em seu Jornal da Comunidade.)
Mas… devaneio antes de falar do SarsCov-2, o tal escoteiro das tragédias enquanto insisto em denunciar mais aleivosias, certo piores que excluir temporariamente da produção um provecto jornalista.
Já foi melhor
Houve tempo em que os povos mais civilizados dos lugares que o eurocentrismo ensinou-nos chamar Extremo Oriente enviavam a estas plagas, assim como à Europa e às demais terras no caminho, coisa muito diferente desse infame coronavírus.
Lembram-se de Marco Polo? Pois é, suas travessias – as propriamente ditas, físicas e também as simbólicas – pra lá e pra cá entre dois mundos trouxeram ao ainda semibárbaro Ocidente maravilhas criadas lá nas plagas dos mandarins: das sedas cujo comércio, na remota Antiguidade, inaugurara as rotas reiteradas pelo viajante veneziano às especiarias que mais tarde requereriam caravelas e galeões nas maiores, mais caras e longas expedições mercantis até então empreendidas; aliás as mesmas que alargaram os horizontes dos europeus e ensejaram conhecimento e compreensão do mundo como o sabemos hoje.
E bem se justificava, a ávida demanda por sedas nos mercados europeus. Elas serviram a algo mais que ao fausto das cortes de Versalhes, Viena…, apreciadoras do gentil farfalhar do tecido; mais que carícias à pele vulnerável dos reis e seus parceiros(as), porém, o tecido é excelente isolante térmico e anteparo confortável entre epidermes de consistência diversa – a delicada pele do bicho-homem e o couro seco, curtido de animais menos frágeis.
Sedas e especiarias – cujo emprego remete-nos à noção de conforto, riqueza, sofisticação, prazerosos saraus e alcovas luxuriantes, prazeres à mesa – eram então apreciadas por seu valor utilitário. Os fios delicados e resistentes, originalmente produzidos meio que por mágica na metamorfose da lagarta em borboleta, viriam a ser tão importantes batizariam os principais caminhos das caravanas na Antiguidade e, por analogia, a própria atividade; e não é de estranhar que a expressão Rota da Seda esteja outra vez na mídia, agora a denominar a expansão comercial da China e a demarcação de novas áreas de influência, a remodelar as relações internacionais de troca.
É a saúde!, idiota
Devo dizer que as referências históricas às especiarias intrigaram-me o primeiro aprendizado no tema. A enumeração e descrição contidas nos livros, apesar das explicações dos mestres, pareciam indicar algo demasiado corriqueiro, nem de longe a sugerir pudesse vir a transformar a atividade econômica planetária.
Como?, então?, cravo, canela (sem Jorge Amado nem Gabriela…), nós moscada, cominho, pimenta ganharam status de insumo precioso, a suplantar até o sal que em eras mais remotas fora valorizado a ponto de conformar unidade monetária? – todos se lembram da origem da palavra ‘salário’, suponho.
Pois foi o prosaico e hoje barato sal (sim, o cloreto de sódio) que deixou nos momentos adequados as cozinhas de minha infância para adentrar salas de aula e dar-me a pista: o problema era a conservação dos alimentos, sobretudo da proteína de origem animal, e seria resolvido pela combinação do sal com as especiarias.
Consta que o restabelecimento desse mercado, após a crise resultante do fechamento das rotas mediterrâneas e Ásia central em função dos desentendimentos com o Império Turco em Constantinopla, teve de imediato os efeitos diretos esperados – pessoas pararam de adoecer e morrer, mesmo submetidas às péssimas condições de higiene individual e coletiva vigentes, pela simples mistura ao sal de pitadas de pimenta, nós moscada, cravo para temperar (= dar têmpera, consistência, por extensão segurança) a carnes e peixes.
Fragilidade
Finalmente encerro a digressão, certamente pouco útil na afirmação de inconformismo ante a solerte visita. É isso: gente se acostumara a receber boas coisas do Oriente, daí a estranheza ante a tragédia que já ceifou milhões de vidas. E eu ainda nem falara de outros bens e conveniências devidos à engenhosidade daqueles povos, como a invenção do papel e da pólvora. E se o seu emprego entre nós nem sempre foi exatamente o mesmo – parece certo que os chineses usavam pólvora só em fogos ornamentais, não em armas – tal se deve à própria cobiça e belicosidade prevalecentes no Ocidente.
Lavrado meu protesto, devo entretanto registrar que a intromissão do SarsCov-2 em minhas rotinas causou mais indignação que males efetivos, diretos, mesmo tendo em conta os incômodos de uma leve febre e alguma dificuldade em respirar – como assim?!, preocupava-me, o pulmão não enche mais?
Cumpridas duas semanas e pico, coroadas por menos de um dia em tratamentos ditos intensivos, constatei bastante irritado que a covid invalidava-me a leitura, até por que quartos de hospital e uti combinam pouco com livros.
E com a lembrança de que essa foi apenas minha terceira experiência em hospitais (afora visitar alguém) em quase oitenta anos, de tudo ficou a espantada, inconformada sensação de fragilidade:
Até eu posso adoecer! – brinquei com minhas filhas; mas falava sério.
Ultrapassado o episódio infame, é hora de lamentar que irritação e indignação hajam-se substituído por sentimentos muito mais intensos, tanto pior se muito tristes. Como que a lembrar-me de que a pandemia está por aí, firme à espreita e ainda reserva muito sofrimento, mal retomo a rotina e sei da perda de dois amigos queridos.
Sérgio Mamberti
De um deles a imprensa melhor que eu já lamentou a partida, enorme e irreparável: Sérgio Mamberti, glória de nossas artes cênicas, foi meu companheiro de lutas na juventude.
Estivemos especialmente próximos na virada das décadas de 1960–70 quando, ambos no Partido Comunista Brasileiro (ele em Santos mais São Paulo e estados do sul, eu no Rio e Minas), improvisávamos novos contatos e construíamos esquemas alternativos de ligação dos comitês dirigentes duramente atingidos pela repressão.
Foram muitas missões partilhadas, inclusive para salvar companheiros em iminente ameaça de ‘cair’ ou já presos sob condições especialmente difíceis – o que em um como outro caso poderia significar ‘desaparecimento’. A muitos deles ajudamos a sair do país, em loucas viagens além fronteiras sul para que os acolhessem aliados que lá viviam, inclusive o presidente João Goulart.
Assim cultivamos, a par do companheirismo político, uma sólida amizade que não se desgastou com o tempo nem com os mil quilômetros entre São Paulo, onde ele morava, e Brasília. Sempre achamos jeito de retomar conversas, principalmente no período em que serviu com denodo à área cultural dos governos Lula e Dilma.
Anna Medeiros Peliano
Quase terminava 1973 quando me telefonou a querida amiga que há cerca de dois anos não encontrava:
– Marco Antônio, vi seu nome entre os novos contratados do Ipea; ligo para lhe dar boas-vindas.
Era Anna Maria Medeiros Peliano, com quem mantivera agradável convívio em nossa Juiz de Fora, no entanto interrompido no período em que precisei afastar-me, meio que me esconder em atividades deslocadas de meu principal centro de interesses – o jornalismo – e moradia semiclandestina no interior deste Planalto Central.
Na verdade, lá na nossa terra eu me ligara mais a seu pai, José de Alencar Medeiros, ilustre intelectual, militante e fundador do Partido Socialista Brasileiro, meu parceiro em muitos dos movimentos então chamados ‘subversivos’ que aqui relatei.
Anna, bem mais nova que eu, secundava o pai nas ações ditas ‘legais’ (não-clandestinas) das campanhas revolucionárias enquanto concluía a universidade: sempre fiel ao engajamento nas causas progressistas, empenhava-se em atividades diferentes das nossas – as quais por vezes pouco iam além de manter a estrutura partidária e sobreviver, a duras penas – e mais produtivas a longo prazo, como demonstraria na profícua atividade intelectual que lhe marcaria a atuação futura.
Com Anna e o marido, José Carlos Peliano, convivi coisa de duas décadas no Ipea, o Instituto que responde pelo planejamento das ações de governo. Sempre admirei no casal – inclusive quando os amigos deixaram de ser um casal –, além das mentes brilhantes, a responsabilidade social aplicada ao serviço de estado e a disponibilidade para abraçar as boas causas.
Quando o juizforano Itamar Franco assumiu a Presidência da República, em 1992, Anna foi convidada a integrar o primeiro escalão do governo. Recusou, não queria cargos e honrarias mas ajudou como poucos a formular a inovadora estratégia social daquele curto interregno, inclusive na concepção de projetos assistenciais que não se confundissem com ‘assistencialismo’ desmobilizador. Os conceitos que defendeu impregnaram o governo Itamar e materializaram-se, por exemplo, nas profundas mudanças introduzidas nos setores da educação, saúde e na empreitada redentora levada a cabo pelo Betinho – sei que você se lembra do ‘irmão do Henfil’, leitor.
Em feliz coincidência, foi junto à amiga que me recebera no Ipea que encerrei a participação no serviço de estado, ao aposentar-me em 1995. Sob a liderança Anna integrei a equipe de apoio ao Programa Comunidade Solidária, dirigido pela doutora Ruth Cardoso, mulher de Fernando Henrique.
Avessa a rapapés protocolares e ao próprio título ‘primeira-dama’, a brilhante antropóloga concebeu (com apoio de Anna e de Cláudia Costin, hoje diretora da Fundação Getúlio Vargas) uma programação voltada para a articulação da sociedade na superação da pobreza e exclusão social.
Tudo a ver nossas inclinações, ça vas sans dire, e ademais os fados concederam-me um bônus adicional: como não pudemos nos encontrar com frequência nos últimos anos, as melhores lembranças que guardo da amiga têm a ver com a intelectual plenamente mobilizada, consciente da validade de seu trabalho e dos posicionamentos que assume.
De fato, a recordação mais vívida que guardo de Anna é sua expressão determinada, serenamente indignada ao criticar decisões da equipe econômica do governo Fernando Henrique; e sob endosso silente da mulher do presidente…