Ideias de jerico
Ideia de jerico
A polêmica quanto à exigência de certificado de vacina para ingresso no território brasileiro deveria sequer ter começado. É prática usual em viagens internacionais, todo o mundo (literalmente) adota-a, inclusive o Brasil.
A ideia (de jerico) de recusá-la só poderia mesmo sair da cabeça não pensante do tosco, ignorante Jair Bolsonaro; azar nosso, ele é presidente da República.
Menos mal que a resistência idiota do governo tenha sido superada pela liminar concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Stf, que condiciona à imunização o ingresso no Brasil por via aérea ou terrestre.
Deixam pra lá
Tenho lido analistas da cena política que detectam nos absurdos proferidos pelo presidente uma deliberada estratégia para escandalizar a elite intelectual brasileira – que ele odeia por não conseguir alcançar-lhe o pensamento, por isso combate – e agradar a massa informe dos bolsonaristas ‘raiz’, que se babam de gozo ante os impropérios do chefe.
Esse infausto fenômeno é denunciado cotidianamente na imprensa mas os jornalistas, talvez entediados pela repetição de absurdos, parecem presa de um certo conformismo: explicam a disfuncional estratégia do governo Bolsonaro – nociva até sob o ponto de vista do ex-tenente e suas veleidades reeleitorais – e depois deixam pra lá.
Não dá
Não dá pra deixar pra lá, imunização é coisa séria e a pandemia não acabou.
As nações europeias apavoram-se ante a iminência de uma quarta onda e assim como os amedrontados Estados Unidos tentam evitá-la mediante convencimento dos recalcitrantes, empenhados num criminoso negacionismo ante as vacinas, a afinal proteger-se e proteger todos.
A China e demais nações daquelas remotas (para nós) regiões do leste, de onde tudo indica o SarsCov-2 partiu para assombrar o mundo, foram bem sucedidas no primeiro enfrentamento e agora intensificam medidas protetivas quando o vírus dá mostras de recrudescer.
Tradição no ramo
O negacionismo de Bolsonaro, que teima em não se proteger e os circunstantes enquanto repassa mentiras como associar vacina a aids, volta-se contra ele.
O Brasil tem tradição no ramo. Somos das primeiras nações a estabelecer imunização obrigatória (contra a varíola e a febre amarela) e a partir das experiências pioneiras erigimos mui justamente herói nacional o médico e sanitarista Oswaldo Cruz – o apóstolo das vacinas – e criamos imunizantes como o soro antiofídico, de Vital Brazil.
Consolidado esse capital científico seguimos ativos, dinâmicos na pesquisa e desenvolvimento de antídotos às ameaças dos micro-organismos com que forçosamente temos de haver-nos.
Campeões das vacinas
Além disso, desenvolvemos desde a década de 70 do século passado um eficaz sistema de imunização em massa, beneficiado ainda pela estruturação nos anos 2000 do Sistema Único de Saúde, o Sus. Assim o Brasil vacina anualmente dezenas de milhões de crianças, de recém-nascidos a pré-adolescentes, protegendo-as de poliomielite, sarampo, meningite e mais uma série de afecções que outrora dizimava a população infantil.
E desde que os surtos influenza passaram espalhar-se pelo mundo com lúgubre pontualidade, inclusive com vírus mutantes a cada ano, são imunizados tempestivamente outros tantos milhões, esses de idosos e outros grupos vulneráveis. O resultado é que os brasileiros somos uma espécie de campeões mundiais na média de aprovação da vacina contra a Covid-19 – algo em torno de 90%.
Ofensa terrível
Afinal Bolsonaro emplacou seu ministro “terrivelmente evangélico” no Supremo Tribunal Federal e fê-lo coerentemente com seus ataques às instituições, ofendendo terrivelmente (aí, sim) o estado laico, cláusula pétrea da Constituição. Na qual também se inscrevem conceitos que balizam as indicações dos membros da Corte pelo presidente da República, expressos em duas singelas premissas que têm nada a ver com religião: notório saber jurídico e reputação ilibada.
Projeto de poder
Sei, leitor, houve casos em que tais prescrições foram ignoradas e os indicados chegaram lá sem que se lhes cobrasse preenchimento dessas condições e mesmo a contradizê-las – de alguns as más línguas asseguram ter saber jurídico ‘ilibado’ e reputação ‘notória’. Não vou dar nome aos bois, pareceria fofoca e escapa às pretensões deste colunista investigar proficiência ou comportamento de ministros do Stf.
É tema que deveria aguçar a curiosidade de repórteres investigativos, que bem haveriam de observar mais atentamente um suposto projeto de poder implementado por líderes de denominações evangélicas.
Líderes enrolados, …
Nada contra a participação política de religiosos, sejam eles católicos, protestantes, espíritas, de cultos afro-brasileiros… O problema é que os dirigentes evangélicos que seguidamente cruzam a fronteira entre a apascentação de seus rebanhos e os conchavos políticos emitem sinais pra lá de alarmantes de suas intenções, afora os métodos de ação.
Um bom exemplo (negativo, sa va sans dire) é a atuação de Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus e de seu sobrinho e herdeiro Marcelo Crivella, desastrado e desastroso prefeito do Rio, ademais enrolado em suspeitas de corrupção e felizmente defenestrado ao tentar reeleger-se.
… incompetentes e atrasados
Acresce tragédia à incompetência a atuação da ministra Damares (ah!, a Damares…), cuja pretensa fidelidade aos ditames de sua fé conduziu ao absurdo de condenar a sofrimento e opróbio, talvez à morte, uma infeliz criança (dez anos!) que fora estuprada e precisava interromper a gravidez para salvar a vida.
Pior ainda é a cumplicidade e não raro participação ativa de líderes evangélicos na destruição, promovida pelo governo Bolsonaro, das estruturas e mecanismos do estado em áreas relevantes como meio ambiente, educação, saúde (em plena pandemia), segurança, proteção de minorias.
Maioria sincera
Nenhum reparo, reitero, à participação política de evangélicos, identificação abrangente atribuída ao conjunto de adeptos do protestantismo, tanto aos tradicionais (metodistas, luteranos, presbiterianos…) como aos chamados neopentecostais como os da citada Igreja Universal, da majoritária Assembleia de Deus e outras denominações. Acredito que a maioria de seus fiéis assuma sinceramente a fé e tenha nada a ver com maquinações dos ‘malafaia’ da vida, mesmo quando são usados como massa de manobra em politiquices e politicagens.
Lições de democracia
Eu mesmo estudei no Granbery, colégio metodista de Juiz de Fora em que recebi lições de democracia, amor ao próximo e consequente aceitação das diferenças, defesa das minorias desprotegidas, apego à lei e até respeito à natureza, noção pioneira naqueles airosos, descuidados anos 1950 em que nem se conhecia a palavra ‘ecologia’. E tenho lido pensadores evangélicos, inclusive membros de denominações neopentecostais, que se opõem ao conservadorismo dos mais conhecidos dirigentes e recusam cumplicidade com o atual governo, promotor do atraso.
Traição
Ainda no tema, admiro a dupla resiliência de Marina Silva, no pertencimento a confissão evangélica e no empenho pelo desenvolvimento sustentável.
Suas convicções ecológicas acirraram contra sua campanha à Presidência da República em 2014 – num momento crucial em que se afirmava favorita – o ódio da mais retrógrada facção do poderoso agronegócio.
Já em sua fé traiu-a, na mesma circunstância, um pastor-político (político-pastor?), notório radical de direita que ainda hoje arregimenta manobráveis massas evangélicas; ele impôs-lhe silêncio na discussão de temas ditos comportamentais – direitos das mulheres, aceitação da multiplicidade de gêneros, proteção das minorias – e isso acabou por ser fatal a sua campanha.
Rezas no Stf?!
À guisa de conclusão das controvertidas declarações do pastor-jurista (jurista-pastor?) logo após ser referendado pelo Senado – aquela ridícula paródia da frase de Armstrong ao chegar à Lua –, resta saber se será capaz de atender à convocação de Jair Messias para que promova orações no plenário do Stf ao menos uma vez por semana.
Duvido que seus futuros colegas prestem-se a tal hipocrisia, sabendo-se que entre eles existem gnósticos e agnósticos, religiosos e ateus. Mas tanta coisa esquisita já aconteceu (acontece) nesses tempos bolsonários…
Laicidade desrespeitada
A laicidade do estado inscrita na Carta magna é diuturnamente desrespeitada quando se entronizam crucifixos em seus prédios. A própria Corte suprema permitiu o ensino religioso em escolas públicas, decisão cuja juridicidade obviamente não discuto mas reputo infeliz, política e socialmente: parece-me contrariar o espírito da Constituição cidadã.
Ademais, a introdução de orações no Stf desrespeitaria ainda outro ditame constitucional: a liberdade na escolha fé, na medida em que preces costumam embutir preceitos de uma dada religião, e só dela.
Meia verdade
Sorrateiros oponentes desses conceitos, aliás adotados em todas as democracias do mundo, costumam usar argumento solerte: dizem que o estado é laico porém não ateu, portanto não exclui a fé.
É meia verdade.
Ateísmo é negação da existência de qualquer deus e pressupõe atitude contra a crença em um (ou vários) ser(es) supremo(s) dotado(s) das características que lhe(s) atribuem os adeptos de religiões – e de tal ativismo contra a crença o estado deve, sim, passar ao largo. Entretanto a mesma linha de raciocínio obriga-nos reconhecer que o estado precisa abster-se, além da negação, de qualquer afirmação ou reconhecimento de fé, qualquer fé, cristã ou não, mono ou politeísta.
Estado agnóstico
Mais: deve o estado afastar-se da mera consideração das religiões, a não ser para garantir a todas (e a seus adeptos) a mais ampla de liberdade de pensamento e sua expressão, inclusive no tema e desde que nos estritos limites da lei – e, não custa acrescentar, igual liberdade a quem não crê. Em outras palavras (se for preciso usá-las), por analogia com situações individuais, diria que o estado tem que ser agnóstico.
Tem que provar
A acrescentar alguma leveza ao tema que costuma suscitar discussões acerbas, permito-me brincar com os versos do enorme ‘Poetinha’ (no Samba da bênção):
“[…] Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida. […] Cuidado!, companheiro, que a vida é uma só; duas mesmo, que é bom, ninguém vai me dizer que tem se não provar muito bem provado, com certidão passada em cartório do céu e assinado em baixo […] e com firma reconhecida!: Vinícius de Moraes” […].
Boas férias!
O escriba concede aos tenazes leitores o benefício de uma semana sem lê-lo, enquanto dá um trato no velho corpo. Volta a tempo de desejar-lhes feliz Natal.
Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])