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15 de janeiro, 2025 | Por: LUIZ CÉSAR FIUZA

DIA DOS NAMORADOS

Maria da Silva era uma moça bem-comportada. Não obstante, tinha namorado quando começou a relacionar-se comigo.

Creio que fosse bem-comportada com ambos. Baiana, fã de Jorge Amado, talvez desejasse vivenciar Dona Flor. Só não sei se me caberia o papel de Vadinho ou Teodoro.

O romance, contudo, deixaria a literatura bem no dia do seu aniversário. Sem saber de nada, comprei roupa nova, me arrumei todo e, recordando Fundo de Quintal, pus um “pisante invocado”. Desse jeito, belo e faceiro, me mandei para a festa. Lá chegando, percebi a presença de um misterioso caminhão na porta. Mas nem tive tempo de investigar, pois uma operação de guerra estava em curso, com o objetivo de me sequestrar e impedir o flagrante. Envergonhada, a irmã mais nova deu uma de cigana e fez a revelação: aquele era o outro! Ou será que o outro era eu? A título de consolo, lembrou tratar-se de “chifre trocado”. Adiantou muito…

Naturalmente aborrecido, voltei para casa, assisti à televisão e adormeci. No dia seguinte, Maria me procurou:
— Olha, foi tudo um terrível engano. Eu havia terminado com ele, mas o cara não entendeu e, aproveitando que carregaria o caminhão em Brasília, resolveu fazer uma surpresa. Ontem, contudo, deixei bem clara a situação e “fiquei livre, leve e solta” para você. Meio ressabiado, resolvi arriscar e, confesso, não me arrependi, pois ela disse a verdade e hoje, apesar de não namorarmos, continuamos amigos.

Maria não guardava maiores semelhanças com a imagem que fazemos do povo da “Boa Terra”. Tinha pele clara, falava como uma metralhadora e, sempre apressada, fazia tudo correndo. Não fosse a habilidade na cozinha, em nada lembraria as tradicionais quituteiras baianas.

Viajamos algumas vezes e, muito tímida, não gostava de ser fotografada. Nas raras vezes que permitia, postava-se como um dois de paus, com a face impávida, parecendo haver passado por uma overdose de Botox. Na hora das fotos, eu tentava aliviar aquele semblante de zumbi. Enchia uma das mãos com pedrinhas e, com a outra, segurava a câmera. Em seguida, arremessava os pedriscos e documentava seus sorrisos nervosos e expressões assustadas. Apesar de nada sensual, ao menos parecia viva.

No início do relacionamento, quis fazer uma média com ela. Convidei-a para conhecer minha casa, ouvir música e jantar. Doido para ser gentil, assumi o fogão. Queria conquistá-la pelo estômago. Horas depois, minhas iguarias foram servidas. Pareciam deliciosas, porque ela comeu tudo. Aliás, ela comia tudo! Não me esqueço do dia em que comeu quase dois quilos num self service. Uma amiga garantia que era lombriga ou, como falava, tinha uma moreia na barriga.

O ano era 2004, e acreditava haver começado aquela história com o pé direito, fato confirmado ao longo do tempo, quando chegamos a cogitar casamento. Nem sei por que não aconteceu, mas Maria da Silva deixaria marcas inesquecíveis em minha vida, como veremos a seguir.

Quatro anos depois, lá estávamos de novo, dessa vez vivendo o Dia dos Namorados. Havíamos chegado da Chapada dos Veadeiros, lugar cercado por misticismo e a fama de receber viajantes de outros mundos. Estávamos, assim, carregados da energia das cachoeiras e dos cristais de Alto Paraíso, momento mágico para reafirmar meus sentimentos. Daí, pensei: foi na cozinha que ganhei seu coração, por isso vou proporcionar-lhe uma nova rodada dos meus manjares.

Levei-a para casa e, romântico, propus:
— Amor, gostaria de cozinhar para você novamente, como da primeira vez.
Ela me fitou com olhar penalizado, para, em seguida, falar:
— Como da primeira vez? Hum! Você ainda se lembra daquela comida que fez para mim?
— Claro, meu amor! Quer que eu repita?
— Bem, não propriamente. A gente estava começando, né? Então, nem comentei nada. Mas… deixa eu falar… AQUILO ESTAVA MUITO RUIM! Comi porque havia acabado de te conhecer. Vamos fazer assim: eu cozinho e, depois, você lava. Tudo bem?

Quanta humilhação! Eu, que me sentia um autêntico chef, rebaixado a lavador de pratos! O trauma foi tamanho, que nunca mais me aproximei das panelas, abdicando até mesmo de cozinhar um ovo. Nem quando a Covid se abateu sobre os meus fornecedores de marmita, fiz as pazes com o fogão.
Outro dia, encontrei-me com ela na rua. Falei sobre traumas e transtornos emocionais que carregava na alma, todos deixados por suas duras e insensíveis palavras. Impiedosa, quase morreu de rir. Esperei que cessasse o gargalhar zombeteiro, para responsabilizá-la de o mundo contar com um cozinheiro a menos. No dia em que condenou meus quitutes e acepipes, lembrei Nero: que grande cozinheiro morre comigo!

LUIZ CÉSAR FIUZA
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