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CONTOS QUETE CONTO

29 de novembro, 2024

Com o cronista Luiz Cesár Fiuza
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CONTOS QUETE CONTO
foto: reprodução da internet

A vó cafetina

O que vem à mente quando nos lembramos de nossas avós? Carinho, ternura, proteção… não é mesmo? Quem não teve uma vovó que nos fizesse as vontades e escondesse nossas travessuras das implacáveis mamães, não sabe como isso é bom. A minha, por exemplo, esteve sempre presente, tanto nas peripécias quanto nos acidentes. Ah, os acidentes… sem eles, não haveria infância. A doce imagem daquela velhinha jamais sairá da lembrança. Acredito, mesmo, que, lá no Céu, deve dar boas risadas e se sentir vingada, ao me ver dormindo e roncando diante da TV. Eu a importunava sem dó, pelo mesmo motivo. Nunca me esqueci de como afrontava as leis da física e do silêncio, ao tombar o corpo, desdenhando do ponto de equilíbrio, sob tonitruante ronqueira. Quanta saudade!

Mas gostaria mesmo era de contar sobre outra avó, muito popular na Catalão (Goiás) de anos atrás. Creio que a idosa também despertasse ternas lembranças, nos muitos “netos” que conquistou ao largo de sua carreira, empresariando a mais antiga das profissões.

E como a conheci? Foi por acaso. De 1990 a 1995, fui dirigente de uma entidade voltada para a cultura e o lazer. Nesse período, mais precisamente em 1993, recebi a oferta de alguns terrenos às margens do Lago Azul, em Três Ranchos. Eles haviam sido entregues a um banco, como “dação em pagamento”, para quitar dívidas. O gerente, querendo fazer dinheiro, nos procurou, indagando se gostaríamos de comprá-los. A proposta nos pareceu vantajosa e decidimos conhecer o local.

Reunimos um grupo de diretores e fomos a Catalão, cidade próxima de Três Ranchos e onde se situava a agência bancária. A negociação exigia cautela e, a cada etapa, retornávamos a Brasília para consultas. Numa dessas estadas, o lado solteiro da força anoiteceu lascivo, ávido por orgia e desvario. A proprietária do hotel, senhora distinta, porém sensível aos impulsos de seus hóspedes, resolveu fornecer a bússola do pecado:
— Vão lá na Vó!
Vó? Uma “vó” saciaria os instintos daquela horda? Sem alternativas, o grupo decidiu seguir a dica da hoteleira e eu seria o motorista do bando. Chegamos à porta da anciã, onde dei dois toques na buzina. Parecia que já nos esperava. Lá veio ela: passinhos curtos e ligeiros, mãos trêmulas e a cabecinha toda branca. A famosa Vó!
Objetiva, aproximou-se da janela e disparou:
— Quem está aqui hoje é a Roberta, que é casada. A Francisca, que é funcionária pública, e a Elaine, que trabalha no comércio.
Em seguida, arrematou:
— Eu não gosto de vagabunda na minha casa. Aqui só tem moça de procedência. O dinheiro aperta, os marido viaja e elas sabe que eu sei fazê os rolo, por isso me procuram. Agora vou chamar elas (sic).
Ato contínuo, iniciou-se um inusitado desfile. Iluminadas pelos faróis do carro, uma a uma, as moças deixavam a casa e exibiam seus atributos, para, em seguida, realizar o caminho de volta.

Ao observar aquela velha cafetina, fiquei pensando: a vó prestava um serviço de utilidade pública, não apenas para os citadinos, mas para os viandantes também. Paralelamente, era uma filantropa. Alcoviteira de confiança, garantia complemento à renda daquelas senhoras, sob total sigilo. Naquele mundo, a indiscrição poderia custar uma vida.

Contaram-me que tinha bem mais de 80 anos. Será? Quantas histórias colecionava? Quantos segredos guardava? Apesar de ser uma figura marginal, acumulava amizades envergonhadas entre os bem-nascidos da cidade, que a ela recorriam em busca de alegrias inconfessáveis. Afinal, não foi a respeitável dona do hotel quem a recomendou? Contaram que, certa feita, um governador visitou o município e o entretenimento ficou por conta das moças “de procedência”. Conforme a lenda, após o encontro sexo-institucional, até verbas para a cidade foram liberadas.

Aquele arquivo vivo me encantava. Algumas horas de conversa teriam o condão de produzir instigantes e caudalosas memórias. Com mais de meio século no ramo, a vó sabia da intimidade de gerações inteiras. Conhecia homens e mulheres sem máscaras, as máculas dos imaculados e os segredos de quatro paredes, para ela, segredos de Polichinelo.

Enquanto elucubrava sobre o potencial literário e histórico da vó, meus amigos analisavam as “meninas”, mas pareciam decepcionados.
— Vamos embora, não gostamos de nenhuma!
Disposto a desvendar os mistérios daquela “Atena do Meretrício”, pedi um minuto aos amigos e solicitei audiência:
— Vó, amanhã retornaremos a Brasília. Quando voltarmos, a gente pode conversar?
— Uai! Podemos. Mas o que você quer conversar?
— Vó, eu sei que a senhora está nessa vida há anos e que sabe muito, não apenas desse trabalho, mas também a respeito dos que dele se valem.
— Escuta, eu não posso ficar parada, senão não ganho dinheiro.
— Eu pago um programa, topa?
Risos!!! Olha, eu não recebo uma proposta dessas há 60 anos. Risos!!!
— Topa?
— Topo. Mas com uma condição: não vou revelar o nome de ninguém. Fechado?
— Fechado!

Regressamos ao hotel e, no dia seguinte, colocamos o pé na estrada. Ansioso, antevia a quantidade de histórias que me aguardava. Quanto material poderia produzir!
Passados três meses, voltamos para fechar o negócio dos terrenos e, como de costume, nos hospedamos no mesmo hotel. Após o cartório, saí atrás da minha entrevista, mas não encontrei quem entrevistar. A casa estava vazia. Nem sinal da vó ou das suas “moças de procedência”. Perturbado pelo silêncio solitário do casarão sem alma, interrompido apenas pelo farfalhar das folhas, sentei-me no meio-fio e observei à volta, até ser abordado por um vizinho, já bastante idoso:
— O que está procurando, meu filho?
— Eu havia combinado com a Vó…
— Ô, meu filho, vai ter de ficar para outra. A Vó se foi. Também sinto falta dela. Era minha amiga. Frequentei muito sua casa.

Pois é, a histórica abadessa havia partido. Foi montar um cabaré no céu. Será que tem cabaré no céu? De minha parte, ficou a lembrança, o vácuo das histórias não contadas e a frustração por não ter lhe proporcionado seu primeiro programa, após 60 anos.

Com o cronista Luiz Cesár Fiuza
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