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Cultura da leitura em declínio e o avanço do ‘analfabetismo funcional’ no Brasil

27 de outubro, 2025 | Por: Agência Senado

O hábito da leitura entre os brasileiros está em queda

O hábito da leitura entre os brasileiros está em queda. Em um país com mais de 200 milhões de habitantes, o número de não leitores representa 53% da população. O dado desperta preocupação na Semana Nacional do Livro e da Biblioteca, celebrada entre quinta (23) e quarta-feira (29).

Hoje, o Brasil tem cerca de 93,4 milhões de leitores — quem leu ao menos um livro nos três meses anteriores —, que correspondem a 47% da população. O número é oito pontos percentuais menor do que o registrado em 2007, quando os leitores eram 55% dos brasileiros, segundo a sexta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro e Ministério da Cultura.

A queda, no entanto, não é apenas percentual. O estudo também aponta para uma diminuição da capacidade de concentração e compreensão, acendendo um alerta sobre o avanço do chamado analfabetismo funcional. A condição, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), abrange pessoas que até reconhecem letras e números, mas não conseguem interpretar textos simples e usar a leitura e a escrita no cotidiano, o que afeta o desenvolvimento pessoal e a plena cidadania.

Em pronunciamento em 14 de outubro, véspera do Dia do Professor, o senador Confúcio Moura (MDB-RO) enfatizou a gravidade da situação, associando-a à descontinuidade de políticas públicas.

— Milhões de alunos frequentam a escola, mas não aprendem o mínimo esperado. Esse colapso silencioso e persistente aprofunda desigualdades e compromete o futuro do país, reduzindo a produtividade, a inclusão e a cidadania — disse o senador. — Alfabetizar bem significa libertar, é dar à criança o poder da palavra, o acesso ao pensamento crítico e à vida plena em sociedade. Nenhuma política pública será mais eficaz do que aquela que assegure a cada menino e a cada menina do Brasil o direito de aprender a ler e escrever com compreensão, prazer e dignidade.

Retrato de um hábito em queda

Os dados da pesquisa indicam que, além da redução do hábito da leitura, houve declínio na compreensão do que se lê: 36% dos entrevistados admitiram ter alguma barreira de habilidade, como falta de concentração ou compreensão limitada. Além disso, a falta de paciência e de foco para a leitura saltou de 18% em 2007 para 40% em 2024. Para o professor do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Adauto Garcia Júnior, uma das explicações para o declínio da leitura é reflexo da informação instantânea, comum na internet e em especial nas redes sociais.

O prazer pela leitura também está em queda. A parcela dos que “gostam muito” de ler caiu de 31% em 2019 para 26% em 2024. Em contrapartida, o número de pessoas que afirmam não gostar do hábito cresceu de 22% para 29%. A pesquisa mostra ainda que há forte correlação com fatores socioeconômicos e educacionais, ou seja, pessoas com ensino superior e renda familiar mais alta têm maior afinidade com a leitura se comparadas àquelas com menos anos de escola e renda baixa.

A relação com o livro muda ainda com a idade: as crianças (de 5 a 13 anos) são as que mais gostam de ler (87%), enquanto a população acima de 50 anos demonstra menor apreço pela leitura (57%). Segundo os entrevistados na pequisa, a principal motivação para ler é o gosto pessoal, seguido por distração e busca por conhecimento, enquanto a obrigação (escolar ou profissional) aparece com pouca relevância.

Garcia Júnior destaca que o gosto pela leitura nasce da curiosidade e do afeto. Ele defende que a presença de livros em casa e o exemplo de pais leitores são fatores com impacto direto e duradouro sobre quem está desenvolvendo o hábito da leitura.

— Para que ele floresça, o livro precisa ser uma experiência viva, capaz de despertar emoção, diálogo e propósito. Pais, professores e líderes têm papel essencial em transformar essa curiosidade natural em hábito, cultivando tanto o prazer do texto quanto a reflexão que ele provoca — afirma.

Ainda que a obrigação não se mostre uma boa incentivadora, a pesquisa evidenciou que os professores estão entre os maiores influenciadores do hábito de leitura. A presidente da Comissão de Educação e Cultura (CE), senadora Teresa Leitão (PT-PE), celebrou, por ocasião do Dia do Professor, a profissão que “constrói cidadania, forma gerações e transforma realidades”.

— É por isso que o professor e a professora são tão importantes: porque educar é um ato de compromisso e de esperança. O trabalho docente é, acima de tudo, uma missão pública essencial para o fortalecimento da democracia e para a construção de um Brasil mais justo e igualitário — disse a senadora, que também defendeu a valorização da categoria. — Valorizar nossos educadores e educadoras é mais do que uma obrigação, é um dever legal, é um compromisso político, é um ato de justiça. Sem valorização profissional, não há educação de qualidade.

Para Teresa Leitão, investir em educação de qualidade passa pela valorização dos professores/Foto:: Edilson Rodrigues/Agência Senado

A influência das telas e os novos formatos

Quando questionados sobre o que mais gostam de fazer no tempo livre, os brasileiros são claros: o uso de internet e redes sociais vem muito antes da leitura de livros. Para o professor Garcia Júnior, a competição pela atenção com dispositivos eletrônicos é um dos principais desafios para a formação de leitores.

— Vídeos curtos, jogos e interações em redes sociais oferecem mais gratificações instantâneas que a leitura de um livro, uma atividade que exige maior concentração.

Mais recentemente, o distanciamento das telas já mostra efeitos positivos desde a proibição do uso de tablets e aparelhos celulares por alunos em escolas pela Lei 15.100, de 2025. Garcia Júnior afirma que escolas e redes de ensino relataram aumento considerável de empréstimos em bibliotecas após a implementação da norma.

Segundo especialistas, o hábito da leitura é prejudicado pelo apelo das telas/ Fotos: Divulgação/MEC e Roberta Aline/MDS

Escritora e diretora do Colégio Sigma, uma escola particular de elite do Distrito Federal, Guizilla Cola também afirma que a retirada dos celulares recuperou parte do foco e concentração dos alunos, mas defende a integração entre tecnologia e proposta pedagógica. Ela afirma que, atualmente, o interesse pela leitura está fragmentado, permeando textos e notícias curtas nas redes sociais.

— Trazer um significado, um propósito, estimulando a curiosidade deles [os alunos], faz toda a diferença. O aluno precisa ter interesse pelo que está lendo, e as escolas conseguem estimular esse gosto proporcionando leituras compartilhadas em sala de aula, rodas de conversas, até leituras de ebooks [livros digitais] — explica.

Para a diretora Guizilla Cola, a escola precisa estimular a curiosidade dos alunos pela leitura

Mestre em computação cognitiva, Diego Figueiredo usa um neologismo para definir a leitura hoje: é “fidigital”, segundo ele, uma fusão entre o físico e o digital. Ele concorda com a perspectiva citada pela diretora: o desafio dos educadores não é afastar a tecnologia, mas ressignificar e unir às metodologias de ensino.

— As crianças de hoje vivem em um ambiente de múltiplas telas, estímulos rápidos e comunicação instantânea, e a leitura exige o oposto: atenção, pausa e profundidade. Discordo da ideia de que afastar a tecnologia seja o caminho. Pelo contrário, entendo que o verdadeiro avanço está em compreender como a transformação digital pode se integrar às metodologias de ensino, tornando a leitura parte dessa linguagem moderna — afirmou Figueiredo.

Para ele, plataformas interativas, jogos narrativos e projetos digitais usados com responsabilidade também podem ser aliados para despertar o interesse e ampliar a compreensão por meio da experiência, principalmente entre os jovens.

Apesar da hegemonia das telas, quando se trata de livros, o papel ainda resiste: 57% dos leitores preferem o formato impresso contra 22% que optam pelo digital. A maioria afirma que consegue se concentrar melhor e compreender a história com mais profundidade no livro impresso, sem interrupções e distrações, como as notificações de mensagens que aparecem na mesma tela em que está sendo feita a leitura.

‘Audiobooks’

Uma junção de livros e recursos digitais já vem ganhando espaço na rotina dos brasileiros: os audiolivros (audiobooks). O percentual de pessoas que os escutam cresceu de 20% em 2019 para 23% em 2024, sendo mais valorizados entre aqueles com ensino superior e que já têm o hábito de comprar livros.

O formato levanta debates, mas especialistas o veem como uma ferramenta complementar e alternativa em meio a rotinas sobrecarregadas. Figueiredo afirma que os audiobooks são uma evolução natural do método oral de transmissão do conhecimento, mantendo viva a experiência de ouvir para compreender:

— Representam um avanço importante, especialmente para quem tem pouco tempo ou dificuldade de leitura tradicional. Também são uma ferramenta de inclusão para pessoas com deficiência visual ou outras limitações que dificultam a leitura convencional — avalia. — Acredito que o audiobook complementa, mas não substitui o livro físico. O som estimula a imaginação, mas o ato de ler aprofunda o raciocínio e fortalece a memória cognitiva.

Garcia Júnior complementa que “escutar livros” oferece benefícios distintos que podem ser mais ou menos adequados dependendo do contexto, do objetivo da leitura e de preferências individuais. Entre aspectos positivos e negativos, o livro em áudio representa uma opção viável para 54% da população, que afirmam não ter tempo para ler.

O distanciamento das bibliotecas públicas

Se a formação de leitores é um desafio, o papel das bibliotecas públicas nesse processo parece cada vez mais fragilizado. Apenas 5% dos entrevistados afirmaram ter nesses espaços sua principal forma de acesso a livros.

— As bibliotecas são espaços na sociedade que desempenham um papel vital na promoção da leitura, pois flexibilizam o acesso e o empréstimo de livros e a criação de “cantinhos da leitura” em locais públicos — enfatiza Garcia Júnior.

Para a maioria dos entrevistados, a imagem das bibliotecas ainda está atrelada a um local silencioso para pesquisa e estudo, uma visão que limita seu potencial como centro de convivência e difusão cultural. O resultado é o esvaziamento desses espaços: 75% dos brasileiros declararam nunca frequentar uma biblioteca, um aumento em relação aos 68% de 2019. Ainda entre públicos que deveriam ser cativos, os números são altos: 49% dos estudantes e 60% dos leitores não frequentam bibliotecas.

Ao contrário do que se poderia pensar, o problema não parece ser a infraestrutura, geralmente bem avaliada por quem a utiliza. A questão reside na percepção e no desinteresse. A percepção sobre a existência de bibliotecas nos bairros piorou: 46% dos entrevistados disseram não haver uma por perto em 2024, contra 20% em 2007.

Embora o Brasil conte com 3.415 bibliotecas públicas, segundo o Ministério da Cultura, para quase metade da população elas são invisíveis. A indiferença também cresceu: ao serem questionados sobre o que os levaria a frequentar mais o espaço, 39% dos não frequentadores responderam “nada”, ante 29% em 2019.

Bibliotecas públicas são pouco frequentadas pela população/Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasília

Desafios, políticas e possibilidades

A necessidade de expansão e dinamização dos espaços de leitura converge com as metas educacionais do país. Nesse sentido, o novo Plano Nacional de Educação (PNE), em análise no Congresso, estabelece como uma de suas prioridades garantir que todas as crianças estejam plenamente alfabetizadas até o final do segundo ano do ensino fundamental. O texto substituirá o PNE vigente (2014-2024).

— Queremos que cada criança domine completamente a capacidade de expressão, que abre as portas para o conhecimento e para a participação social plena — afirmou o presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), durante reunião da comissão especial criada para discutir o PNE.

Somado ao novo plano, o Sistema Nacional de Educação (SNE)aprovado pelo Senado no início de outubro à espera de sanção presidencial, busca organizar a cooperação entre União, estados e municípios para garantir a continuidade e coerência das políticas educacionais.

— Como presidenta da Comissão de Educação e Cultura, reafirmo meu compromisso com a consolidação do Sistema Nacional de Educação e com a construção do novo Plano Nacional de Educação, dois instrumentos fundamentais para garantir direitos e assegurar que nenhuma criança, adolescente, jovem ou adulto fique para trás — destacou a senadora Teresa Leitão.

O Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares (SNBE), sancionado em 2024, também surgiu como uma alternativa para reforçar o ensino público e incentivar a criação e a melhoria de bibliotecas no país. O projeto que deu origem à lei é da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ) e recebeu relatório favorável da senadora Zenaide Maia (PSD-RN) antes de ser aprovado no Senado.

— É mais uma vitória da educação no Congresso Nacional. A lei prevê a implantação de recursos de acessibilidade inclusiva, conexão com internet nos espaços de biblioteca e treinamento de equipes que trabalham nesses equipamentos — afirma Zenaide.

Zenaide Maia relatou projeto para incentivar a melhoria das bibliotecas públicas/Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Entre as diretrizes do SNBE está o treinamento e a qualificação de profissionais para o funcionamento adequado das bibliotecas escolares, o acesso à internet e a integração entre as unidades.

— É essencial um reforço com investimento público nas bibliotecas escolares de todo o país, sobretudo diante da revolução digital e tecnológica que desafia o processo educacional e atravessa o universo e o cotidiano das crianças e dos adolescentes — enfatiza Zenaide.

O senador Confúcio Moura também defende a destinação de mais recursos do orçamento para a área.

— Nenhum investimento é mais inteligente, mais estratégico e mais transformador do que aquele feito em educação de qualidade. Cada real destinado à escola pública é um tijolo na construção de um Brasil mais justo, mais produtivo, mais humano.

Projetos na Casa

Pelo menos duas propostas que tramitam no Senado e na Câmara têm o objetivo de incentivar a formação de leitores no país. O PL 286/2024, apresentado pelo ex-senador Flávio Dino, altera a Política Nacional de Leitura e Escrita para o fortalecimento das bibliotecas públicas e dos bibliotecários a partir de parcerias com instituições públicas e privadas, nacionais ou estrangeiras. Relatado pelo senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), o texto foi aprovado em março em votação final na Comissão de Educação (CE) e encaminhado à Câmara dos Deputados, onde aguarda votação.

O Programa Jovem Senador de 2025 — iniciativa do Senado que fomenta a participação política de estudantes do ensino médio de escolas públicas do país — também gerou uma proposta voltada para o estímulo à leitura. Os 27 jovens senadores formularam uma ideia legislativa que cria o programa vale-livro para alunos da rede pública de ensino, com frequência escolar mínima de 80%.

O texto foi remetido à Comissão de Direitos Humanos (CDH), que pode transformá-lo em um projeto de lei. 

Incentivo para compra de livros foi proposta pelos estudantes que participaram este ano do programa Senado Jovem/Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Reportagem: Lúrya Rocha (sob supervisão de Guilherme Oliveira)
Edição: Maurício Müller
Infografia: Bruno Bazílio
Pesquisa e edição de fotos: Ana Volpe
Edição de fotos e multimídia: Bernardo Ururahy
Design web: Amanda Gomes

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