ARTIGOS
De técnico de futebol e de louco…
6 de outubro, 2023Marco Antônio Spinelli, médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo
Quem acompanha essa coluna deve ter notado que, se eu pudesse, escreveria sobre futebol toda semana. Faço parte dos duzentos milhões de técnicos de futebol do país. Como tenho autocrítica e essa não é uma página esportiva, guardo as minhas metáforas futebolísticas para momentos específicos, como quando perdemos a Copa do Mundo ou algo significativo ocorre. Como o São Paulo foi campeão da Copa do Brasil, algo muito significativo ocorreu, então, me perdoem, leitora e leitor dessas mal tecladas linhas. Até porque técnico de futebol tem algo de psiquiatra, e vice-versa.
Sou de uma família de descendente de italianos, dos dois lados. Virei são-paulino nos anos setenta, aprendi a ler antes de todos, lendo a página de esportes do jornal. Virei são-paulino quando o Palmeiras ganhava tudo, no tempo da Academia: um time inesquecível, que lembro de cabeça e que estragava meus Domingos. Veja como o amor pelo tricolor foi forte e acima de modinhas ou glórias passageiras.
Todos os clubes têm nos jogadores o seu panteão de ídolos e heróis. O maior ídolo do São Paulo é um técnico: Telê Santana. A maior decepção de minha vida no futebol ocorreu com um time do Telê Santana: a seleção brasileira de 1982. Todo dia 05 de Julho eu lembro. Uma seleção mágica, inovadora, moderna, que perdeu para um time quadradinho e com um centroavante em dia iluminado, Paolo Rossi. Telê Santana se redimiu uma década depois, guiando o São Paulo a vencer o mundial interclubes contra o Dream Team do Barcelona. Aquele time tinha um herói arquetípico, Raí, mas no papel, era um time muito inferior ao Barcelona. Telê nunca teve medo de nenhum time, e sempre fez o São Paulo jogar de igual para igual com todos eles. Deu projeção e títulos internacionais para um clube que se permitiu sonhar com Tóquio porque tinha um mestre segurando o manche e dizendo para onde ir. O São Paulo foi campeão da Copa do Brasil, o primeiro título relevante após onze anos. O que a torcida cantou: “Telê, Telê, olê, olê, olê, olê…”
Telê, e o São Paulo do Telê, pairam como um fantasma sobre a mente dos jogadores, técnicos e dirigentes do São Paulo. No ano passado, chegamos à final de uma Copa Sul Americana, contra um time equatoriano, o Independiente Del Vale, com um orçamento dez vezes menor. Perdemos e perdemos amarelando, coisa frequente no time assombrado por fantasmas do passado.
Em 2023 ganhamos de um time bem melhor que o nosso, o Flamengo. Melhor no papel, porque, em campo, é um amontoado de jogadores sem unidade, sem o espírito de um time. Dorival Júnior, chamado por alguns de Dorival Santana, resgatou o orgulho e espírito de grupo de um time humilhado e desacreditado. Um diretor do Palmeiras comparou algumas contratações como “tralha”. O Palmeiras, para desgosto dos palestrinos de minha família, também caiu diante da “tralha” tricolor.
Nessa final, o time entrou desconcentrado e inseguro. Não deu cinco minutos e o Flamengo já tinha ficado cara a cara com o goleiro duas vezes. Velhos fantasmas começaram a frequentar a minha cabeça. O Flamengo abriu o placar. Pronto. Estamos lascados. Empatamos com um chutaço de fora da área. No intervalo, Dorival arrumou o time, que veio para ganhar no segundo tempo. Senhor do próprio medo. Quem ganha, não ganha ignorando o próprio medo. Quem ganha, o faz com o medo a tiracolo, fazendo a pessoa ficar mais atenta, mais esperta, atacando a bola como um prato de comida. Essa deve ter sido a mágica do Dorival: transformou o medo em foco, em vontade. Quando a pessoa finge ignorar o medo, ou finge que não tem medo, vai sentir as pernas tremendo quando menos se espera. O medo vem junto e, se possível, te deixa muito mais afiado diante do perigo. O medo é como um vampiro: só resiste no escuro. Quando a luz do sol bate nele, desaparece. E o sol é a consciência do medo e a vontade de não perder, antes de ganhar.
Foi assim que o São Paulo venceu o medo. E o Flamengo. E a torcida gritou o nome do Dorival.