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Del Rey

31 de janeiro, 2025

Verão de 1982. Um Del Rey vermelho estaciona embaixo de uma das muitas árvores da fazenda esperança, em Gravatá. Dele, saem um casal de trinta e poucos anos e duas crianças pequenas. Uma no colo da mãe e a outra rapidamente posta no colo de uma tia que os aguardava, antes mesmo de encostar os …

Verão de 1982. Um Del Rey vermelho estaciona embaixo de uma das muitas árvores da fazenda esperança, em Gravatá. Dele, saem um casal de trinta e poucos anos e duas crianças pequenas. Uma no colo da mãe e a outra rapidamente posta no colo de uma tia que os aguardava, antes mesmo de encostar os pezinhos no chão de terra. Ambas têm a cabeça baixa, abrigada no pescoço do adulto que as leva. Estão envergonhadas.

Chegaram de Garanhuns, onde moravam. De todos os 13 irmãos, ela (a mãe das meninas) era a única que resolvera sair da cidade natal. A festa na fazenda já estava há muito começada. E essa não era cena incomum. Sendo, os quatro, os de fora, costumavam chegar depois e sair antes de grande parte dos eventos da família.

O pai saiu do carro sem crianças. Ele também trazia certa timidez no olhar. Já no terraço, todos devidamente instalados, a mãe brinca com uma câmera fotográfica, ri largo, abraça um irmão com força, taca-lhe um beijo. Uma mulher radiante que está à vontade entre os seus. Ele, o pai, tem um copo (cerveja?) na mão e mastiga lindamente o que devia ser resultado de um churrasco. Um mastigar cheio de charme. A câmera abre o corte e se vê que veste uma camiseta da tríplice fronteira, decerto um suvenir de viagem. Ele é magro, barba preta e cabelos que já dão algum sinal de queda futura. Engole o que estava na boca, dá mais um gole e sorri para a câmera. Está nítida a certeza de si. É lindo.

Uma das muitas tias puxa a criança menor pelo braço. A menina de quatro anos vira a cabecinha que estava escondida quase até agora e encara a câmera. Encara com força, olha bem pra dentro da lente e, por um segundo, está ali o mesmo olhar do pai.

Passei o domingo presa neste olhar.

No dia anterior, conversava – o que tinha tudo pra ser um oizinho tranquilo de sábado – com minha mãe, quando ela desatou numa história dura do passado que eu não conhecia. Nela, os personagens eram os mesmos quatro do Del Rey. Mas o clima era bem outro. A lindeza de meu pai não condizia com o roteiro que me relatou.

Como eu disse na semana passada, não somos homogêneos, uma coisa só. Somos muitos. Amo meu pai pelo que ele é. Mas também consigo seguir o amando apesar do que é. Herdei dele o gosto por mastigar cada pedacinho da vida, herdei essa certeza (que não passa de desejo) de saber de mim, herdei a timidez de mentira, e a de verdade. E não tenho dúvidas de que tenho comigo também alguns dos pedaços dele que me espantam. Sigo sendo a menina do vídeo, ainda com esperanças, mas, há muito, de cabeça alta e sem ilusões de reis. Espero que tenham tido um bom dia dos pais. Beijo grande e boa semana.

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que… [email protected] https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/

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