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VARIEDADES

Fernanda Montenegro sobre estar em cena aos 94 anos: ‘No palco? Me sinto viva’

9 de maio, 2024 / Por: Agência O Globo

Fazendo sucesso com a leitura ‘A cerimônia do adeus’, extraída da obra de Simone de Beauvoir, Fernanda Montenegro fala sobre temas como a vocação que a move: ‘Ainda acordo e canto. Isso mantém o ímpeto de pegar a si mesma e dizer: vamos lá’

Fernanda Montenegro sobre estar em cena aos 94 anos: ‘No palco? Me sinto viva’
Fernanda Montenegro: 'A esta altura da vida, acho que estou bem, não é?' — Foto: Divulgação

Se no palco Fernanda Montenegro repete a frase de Simone de Beauvoir “o acaso tem sempre a última palavra”, na plateia do Teatro Casa Grande, no Leblon, Zona Sul do Rio, a coisa é diferente. Ninguém está ali aleatoriamente. Pelo contrário. Muita gente pelejou para conseguir um dos disputados ingressos para a leitura “A cerimônia do adeus”, que virou um acontecimento na cidade do Rio.

No camarim, prestes a subir ao palco onde realiza hoje mais uma sessão, a atriz está concentrada. Fernanda dá o último gole num café sem açúcar e deixa a marca de seu batom avermelhado na xícara branca. Passa, então, a retocar a maquiagem que ela própria fez, com boca e sobrancelhas bem marcadas.

— Camarim é como o ventre, está entendendo? Você chega aqui, larga tudo lá fora e começa outra proposta de realização, de sonhar outra vida em você mesma — filosofa.

O sonho de Fernandona começa a tomar forma pouco antes da hora marcada para o público ocupar seus lugares. Ela evita ficar muito tempo no teatro por causa de alergia, que pode desencadear uma tosse chata caso tome contato com ácaros encruados no carpete.

Chega a fazer um breve ensaio, calibrar o microfone, que ainda estranha (“sou de uma era em que tínhamos que usar a voz, e os lugares eram feitos para dez mil pessoas ouvirem seu suspiro”, diz) e realizar exercícios de voz para “o corpo ficar latejando de vida”.

‘Acho que estou bem’

Naquela noite, porém, ainda que absorta em cada detalhe de seu ofício, ela abriu espaço para uma conversa com o GLOBO. Um papo que acontece dentro desse estado reflexivo que toma a atriz antes de entrar em cena.

— A esta altura da vida, acho que estou bem, não é? — indaga, do alto de seus 94 anos, respondendo ao “como vai?”.

Em seguida, convida a sentar. É quando começa a discorrer sobre o que a move para estar ali.

— É vocação, minha filha, não tem jeito — diz. — Quando há esse chamado, a gente vai como pode. Senão… pra que viver?

O brilho nos olhos arregalados e o vigor com que explica a dimensão que o trabalho tem em sua existência provocam a pensar que as limitações impostas pela idade não são páreo para o encantamento desta mulher ao realizar o que nasceu para fazer. Não tem sido esforço árduo para o seu corpo estar em cena falando sem parar durante 70 minutos?

— No palco? Me sinto viva — responde. — Tem uma hora em que se vive com o coração na mão, sabe? Ainda acordo e canto. Isso mantém o ímpeto de pegar a si mesma e dizer: ‘Vamos lá!’

A atriz define o teatro “como um lugar especial de vida”. Diz que não sabe explicar o que se passa dentro dela, que palavras são “bobas” diante do “imenso” que sente ao exercer seu ofício.

— É uma coisa monstruosa. Não sei dar conta do meu dentro. Às vezes, dizem que sou capaz de um trabalho, de uma interpretação, de um posicionamento. Mas muita gente acha que não. Há uma banda que diz que sou uma invenção do Paulo Francis (risos) — brinca. — Ator de teatro é instrumento de si mesmo. Pianista toca piano. Ator toca ele mesmo. Se o som sai do violino, você ouve. Não sei o que sai de mim. É o interior.

Certo é que a vocação “ampara”, acredita

— Faz você aguentar o impossível, atravessar as horas de espera, em que parece que não vai conseguir. Ela mesma é além do dar conta. Da dimensão disso eu mesma não dou conta, a não ser tentando dar conta dessa chamada que foi a minha vida para esse tipo de comunicação humana.

Mistério é uma palavra que ela considera adequada para definir o turbilhão interno que eclode cada vez que atua

— Você acha que ali está a sua vida. Há espetáculos que ficam quatro anos, dez anos em cartaz. Todo dia você tem que estar ali. E, aí, passou a vida. Tive colegas que, quando morreram pai ou mãe, enterraram cedo para ter espetáculo à noite. Meus pais foram enterrados cedo porque eu tinha que trabalhar, ir para o estúdio gravar.

Prova de vida

Se nem a morte é capaz de parar Fernandona, ela precisou provar recentemente que estava viva. De 2019 a 2022, o INSS deixou de depositar a aposentadoria da atriz, exigindo que se apresentasse pessoalmente à agência bancária.

Na pandemia, a atriz teve dificuldade para fazer isso.

— Minha aposentadoria estava indo para outra pessoa ou… para um morto. Penso que é necessária, sim, essa prova de vida que exigem. Porque muita vida que não existe mais continua recebendo. Deixei de receber por um tempo e tem um processo acontecendo. Mas isso tudo passa e agora estou recebendo minha aposentadoria para a qual paguei por 30 anos.

São quase 80 nesta profissão, ela calcula.

— A partir dos anos 1960, eu, Fernando (Torres, ator e seu companheiro, que morreu em 2008) e colegas começamos a nos autoproduzir. Com dificuldade, mas quisemos ter a vida nas mãos porque havia o sonho de um repertório — recorda.

Era um tempo em que ela integrava o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e contribuía para a área dos comerciários, já que a profissão de ator não era reconhecida.

— A vocação para engenharia e matemática não são maiores do que a vocação cênica — critica. — Mas, enfim, paguei essa aposentadoria por mais de três décadas e me aposentei com o que puderam me pagar. É meu trabalho como profissional. Às vezes, acham que a arte é só prazer, glória e luz em cima, que não tem um gasto físico…

O esgotamento é natural, mas parece um pouco distante de Fernanda.

— Ainda estamos em pleno mar, mas já navegamos, e muito.

Por ora, ela segue na vibe da música de sucesso de Zeca Pagodinho:

— Isso mesmo, deixa a vida me levar. Tem que deixar.

Com plateia que inclui público da paraíba e de SP, leitura é um acontecimento no Rio

Com o sucesso da leitura “A cerimônia do adeus”, os paulistas Alessandro Cunha, jornalista de 34 anos, e Celso Soares, designer de 35, pouco antes da apresentação, aguardavam na lista de espera da bilheteria para ver se sobraria algum lugar. Tiveram sorte.

— Há situações a que não se pode deixar de ir. Fernanda está com 94 anos e é uma atriz emblemática. Alguém que não vive apenas do legado, mas do presente. Continua ativa, para a nossa sorte — diz Celso.

Diretamente da Paraíba, um grupo de quatro amigos contava ter comprado passagem rumo ao Rio para assistir ao show da Madonna sem qualquer esperança de conseguir ver também Fernandona em cena. Mas, uma vez que um deles teve sucesso em adquirir ingressos para todos (separados, pois não havia lugares juntos), resolveram esticar a estada. Mudaram a data da passagem de volta e estenderam a hospedagem.

— É uma grande oportunidade vê-la pessoalmente. Só de abrir a cortina e ver que está viva, trabalhando, me emociona, é uma divindade do teatro — define a professora e intérprete de libras, Niely Silva de Souza, de 38 anos, que brinca: — A gente não esquece o Oscar roubado dela por “Central do Brasil”. Aquela foi a maior injustiça de todos os tempos da premiação.

Sentada em uma das primeiras filas estava a escritora e acadêmica Heloísa Teixeira, companheira de Fernanda na Academia Brasileira de Letras. Ela assistia à leitura pela segunda vez.

— Todo mundo está aqui para ver Fernanda pessoalmente. Mas o que acontece no palco é muito ela também. Porque é uma leitura tão particular. Estou lendo de novo “A cerimônia do adeus” e é difícil saber em que parte está o texto que ela fala. Virou tão pessoal… Parece que Fernanda o escreveu.

Regina Casé se espantou com a forma com que Fernandona converteu a leitura em teatro.

— Ela pega o texto e transforma em dramaturgia na hora — comentou a atriz.

A energia que acontece no público é das coisas que mais fascinam Fernanda.

— Cada dia a gente é de um jeito. Cada plateia detona na cena um andamento. Há mistério na união de seres humanos a propósito de obter uma sensibilização dramática da vida — analisa.

A barreira do celular

O silêncio, a integração e o respeito do público durante os 70 minutos é notado pela atriz. Ela diz que tem sido assim durante toda a temporada.

— Ninguém fica puxando o celular. A gente vê isso no cinema e em muitos encontros em que o eletrônico está ali. Está tão no uso cotidiano que a gente tem saudade do outro ser humano.

Para Fernanda, precisamos “carnificar nossa relação humana”.

— E o teatro está no centro disso. É a história do homem, mais do que qualquer outro setor artístico de criatividade humana — avalia ela, celebrando o momento atual. — Nossos teatros estão lotados. Seja comédia, seja musical, monólogo, tragédia. Às vezes, parece que o teatro está morto, esquecido. Não!


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