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Jurisprudência do caso Gabriel Ferreira – depois do ‘NÃO’

20 de setembro, 2024

Ana Addobbati, CEO e fundadora da Livre de Assédio, startup que apoia a prevenção ao assédio sexual, moral e discriminação por meio de ações estratégicas de impacto

Jurisprudência do caso Gabriel Ferreira – depois do ‘NÃO’

Finalmente, o ‘Não é Não’ chega ao entendimento do Supremo – e desde o carnaval de 2018, é o que pedimos. Recentemente, a 6a Turma do Supremo Tribunal de Justiça entendeu que não é preciso reação de força, marcas físicas ou imagens que mostram luta corporal da vítima com seu abusador para ser considerado relação sexual sem consentimento e, portanto, crime. Um “não” já seria suficiente para impor o limite entre o que é ato permitido ou violação dos nossos corpos e nossa vontade.

Trata-se de um avanço, sim. No mês passado, tivemos a notícia da atrocidade cometida contra uma menina de 13 anos que foi se encontrar de forma consentida com um rapaz e terminou sendo forçada a manter relações sob efeito de bebida alcoólica com vários outros. Sei que podemos ter pessoas aqui considerando que, diante de crimes como esse, não existe nem relativização – ainda mais quando se fala de abuso contra uma menor de idade.

Mas, não se precisa ir ao extremo para que exista um entendimento do que é considerar a nossa vontade. A nossa autonomia em decidir. E é por isso que decisões como a do Supremo vem para pôr fim a tanta culpabilização da vítima que enfrenta uma delegacia, audiências e todo o julgamento da sociedade para ter a sua reparação por um abuso cometido.

Porque não tenham dúvidas de que os advogados de defesa usam do argumento “mas ela paquerava com ele”, “ela queria”, “ela mandou mensagens picantes no whatsapp”. Ela podia sim, querer até a página 2, mas se houve o não, por que relativizar e deixar na mão dos juízes interpretarem o que é consentido ou não? Há pouco tempo, tivemos também a condenação de um famoso dono de bar em Brasília por estupro, em que o consentimento da vítima esteve em xeque. E, porque havia imagens – e sem deixar de elogiar o trabalho incansável da advogada das 12 vítimas e a mobilização das mulheres – conseguiu-se êxito.

Imagine aí também que existem ainda situações em que a vítima está sem autonomia, sob efeito de drogas e álcool. Pela lei municipal e estadual “Não se Cale” de São Paulo, uma mulher sem consciência, mesmo que tenha feito uso de bebida e droga de forma voluntária, sem coerção ou fraude (golpe do drink envenenado), ainda sim tem direito à proteção. A mulher precisa de cuidado, acolhimento e encaminhamento para o posto médico. Mas, vejam: somente agora, um não sem tapa, murro ou arranhão passou a ser considerado suficiente para que os limites fossem respeitados.

E, por fim, o que dizer de namoradas e esposas que são vítimas de coerção, chantagem, e outras formas de abuso, que podemos chamar de estupro digital, estupro marital? É de se imaginar que, a partir de agora, o lastro jurídico existe para que até os advogados de defesa comecem a repensar suas estratégias para isentar abusadores da culpa de não respeitar nossos limites. Eu lembro que o primeiro carnaval do Não é Não, do qual fiz parte como mobilizadora, foi em 2018. E só agora essa premissa consegue finalmente ser cravada no entendimento geral dos nossos magistrados.

Ana Addobbati, CEO e fundadora da Livre de Assédio, startup que apoia a prevenção ao assédio sexual, moral e discriminação por meio de ações estratégicas de impacto