VARIEDADES
Michael Keaton lembra esnobada de Hollywood, perda da mulher e paternidade: ‘Podia ter ganhado mais dinheiro. Mas tive um filho porque queria ser pai’
17 de setembro, 2024 / Por: Agência O GloboAtor está em diversas produções, como ‘Beetlejuice’, e volta em outra como assassino profissional e pai de família fracassado
Há uma cena em “Goodrich”, comédia dramática independente que vai ser lançada em breve, na qual o personagem de Michael Keaton, um comerciante de arte de Los Angeles perdido em meio a uma crise de meia-idade tardia, aceita participar de um workshop de respiração para conquistar um possível cliente meio hippie. Como premissa, a situação é relativamente previsível: um homem deslocado, da geração baby boom, imerso no esoterismo típico da Califórnia.
Mas o ator, com expressão de muita esperança e ansiedade, faz mais do que só “encontrar sua vibração mais elevada”: se contorce e se sacode, tentando uma espécie de tai chi estilo livre; espanta um enxame de abelhas invisíveis e solta um grito primal (que mais parece um gemido sufocado, na verdade). Esse foi o Keaton que a roteirista e diretora de “Goodrich”, Hallie Meyers-Shyer, imaginou ao conceber o roteiro.
— Foi totalmente pensado para ele, a tal ponto que, se tivesse recebido um não, eu teria enterrado o roteiro e a mim mesma no quintal de casa — afirmou ela.
Foi essa mesma sensação de imprevisibilidade, singular e inesperada, que fez com que o cineasta Tim Burton escolhesse Keaton como protagonista de cinco de seus filmes ao longo de quase quatro décadas, incluindo o mais recente, “Os fantasmas ainda se divertem: Beetlejuice Beetlejuice”.
— Quando você vê Michael em “Os fantasmas se divertem” ou mesmo em “Batman”, existe alguma coisa no olhar dele. Foi por isso que eu quis que ele interpretasse o Batman. Só de olhar para ele você pensa: “Esse é um cara que, de fato, se vestiria como um morcego.” Sabe o que quero dizer? Há alguma coisa naquele olhar que é muito inteligente, engraçada, perigosa e meio louca — comentou Burton.
O Keaton que estava sentado a uma mesa em um canto reservado do espaço de convivência de um hotel, no centro de Manhattan, em uma manhã no fim de agosto, não parecia um maníaco. Vestido como um pai descolado e elegante, com um suéter fino e calças justas, continua magro aos 72 anos (completou 73 no dia 5) e seu tom de voz era tão suave que às vezes eu tinha dificuldade de ouvi-lo por causa do barulho da máquina de cappuccino ao fundo.
Mas aquelas sobrancelhas arqueadas e o sorriso de gato de Cheshire permaneciam intactos, assim como a energia cinética de jazz improvisado do seu papel de destaque em “Corretores do amor”, comédia de Ron Howard de 1982. Até a chegada do café filtrado o fez soltar uma espécie de monólogo rítmico fascinante:
— Muito bem, cara! Perfeição. Perfeito, perfeito, perfeito.
Esse nível de charme pessoal pode não ser familiar para os espectadores que viram Keaton mais recentemente no papel de um bondoso médico rural que acaba se viciando em oxicodona em “Dopesick”, minissérie de 2021 que lhe rendeu um Emmy e um Globo de Ouro. O mesmo vale para quem o viu interpretando personagens mais sérios e contidos em dramas que abordam verdades desconcertantes, como “Spotlight — Segredos revelados” e “Os 7 de Chicago”. Mas poucos papéis sintetizaram tão bem seu talento para unir o drama e a comédia quanto “Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância)”, a virtuosa fantasia de 2014, dirigida por Alejandro Iñárritu, que valeu a Keaton uma indicação ao Oscar de melhor ator e conquistou quatro prêmios da Academia, incluindo melhor filme.
Esse longa-metragem, que exigiu do protagonista de dois filmes do Batman interpretar um ator decadente que já havia sido super-herói, foi muito promovida como um retorno depois de vários anos improdutivos em Hollywood. Keaton entende a narrativa, por mais que não concorde muito com ela:
— Olha, houve um período que foi uma mistura de: eu não tinha nenhum interesse, eu não aparecia em nada bom, eu não era bom. Ninguém batia à minha porta. O único mérito que me dou é por nunca ter me desesperado. Nunca ter entrado em pânico. Já viu aquelas coisas flutuando sobre a bacia de Los Angeles quando você chega de avião? Isso é que é desespero.
Pode-se dizer que o ator já passou por tudo isso ileso. Seu calendário de estreias para 2024 inclui o drama discreto “Pacto de redenção”, que vai estar nos cinemas no dia 26 deste mês e que já está disponível no Max, no qual dirige e protagoniza um assassino de aluguel com um tipo de demência que avança rapidamente; “Goodrich”, que estreia nos cinemas dos Estados Unidos em 18 de outubro (ainda sem data prevista no Brasil); e, sim, como você já deve ter ouvido falar, graças aos enormes outdoors e letreiros nos cinemas, “Os fantasmas ainda se divertem: Beetlejuice Beetlejuice”, a sequência de “Os fantasmas se divertem”, que está em desenvolvimento há 35 anos e que reúne o astro com Burton e várias estrelas do filme original, incluindo Winona Ryder e Catherine O’Hara.
Durante muito tempo, Keaton e Burton hesitaram se deveria ser feita uma segunda parte do filme, mesmo enquanto continuavam a colaborar (incluindo uma versão ambiciosa com atores reais de “Dumbo”, que estreou em 2019). Quando os dois se conheceram, no fim dos anos 1980, e começaram a trabalhar no visual e no tom do personagem Beetlejuice — morto-vivo brincalhão e trapaceiro que adora baratas e ternos listrados —, interpretado por Keaton, eles estavam, em grande parte, improvisando.
— Era o primeiro grande filme do Tim. Na verdade ele já tinha dirigido “As grandes aventuras de Pee-Wee”. Mas éramos só nós dois, com quase ninguém nos vigiando, e dizíamos: “Não sei, o que você acha disso?” “Ah, muito bom, adoro! Sabe o que seria divertido? Se eu fizesse X, Y, Z.” Foi glorioso, de verdade. Mas, agora, fazer e recriar isso de novo é pedir muito aos roteiristas — disse Keaton.
Ao longo das décadas, vários roteiros especulativos foram escritos, mas não chegaram a lugar algum; nenhum deles acertou o tom.
— Já fiz de tudo: novas versões de coisas, reabilitações. Não me importo com nada disso. Queria fazer isso por Michael, Catherine e Winona — comentou Burton.
A nova trama que, por fim, escolheram — uma aventura gótica em que a família de O’Hara e de Ryder mais uma vez é aterrorizada por visitas indesejadas do além — foi ampliada para incluir Jenna Ortega, jovem estrela impassível da série de sucesso da Netflix, “Wandinha”, dirigida por Burton, e a sensual atriz italiana Monica Bellucci, que interpreta a esposa vingativa que esteve afastada de Beetlejuice durante muito tempo.
Entre projetos que talvez se destaquem mais pelos cachês, como o filme “Batgirl”, cujo lançamento foi cancelado recentemente, e várias vozes de personagens de animação (“Carros”, “Toy Story 3”, “Minions”), Keaton tem se concentrado cada vez mais em produções menores e mais pessoais.
“Pacto de redenção” é uma delas: uma história sem muitas reviravoltas, na qual o ator interpreta um assassino profissional e um pai de família fracassado — ele é divorciado e não fala com o filho adulto, interpretado por James Marsden, há décadas — que descobre ter uma doença cerebral agressiva. A atriz polonesa Joanna Kulig (“Guerra Fria”) também participa do filme, assim como Marcia Gay Harden e um Al Pacino muito gentil.
É um filme melancólico e instável, ao mesmo tempo triste e sangrento, com uma subtrama criminal complexa que se encaixa bem no roteiro. Também é a segunda vez, curiosamente, que Keaton dirige e protagoniza um filme sobre um assassino de aluguel, depois de “Má Companhia”, de 2008. (“Gostaria de atuar em todos os filmes de Michael Keaton. Ao lado dele ou sendo dirigido por ele”, declarou Pacino.)
As apostas de vida ou morte certamente são menos literais em “Goodrich”, comédia leve e agridoce, por mais que também inclua problemas familiares e temas como a mortalidade. No filme, Keaton interpreta Andy Goodrich, empresário incansável cujo negócio de arte começa a fracassar ao mesmo tempo que sua segunda esposa o deixa com seus gêmeos de nove anos e sua filha adulta (Mila Kunis) se prepara para dar à luz seu primeiro bebê.
“Pacto de redenção” e “Goodrich” tratam, até certo ponto, dos fracassos e arrependimentos da paternidade: dois retratos muito distintos de pais ausentes que esperam se redimir antes que seja tarde demais. Na vida pessoal, Keaton parece não se interessar muito por histórias de famílias disfuncionais. Como caçula de sete irmãos e filho de uma família católica e operária dos arredores de Pittsburgh, ele se lembra de ter crescido com “três das melhores irmãs e a melhor mãe do mundo, além de três irmãos mais velhos e muitos amigos malucos”. A imagem que ele descreveu foi de uma infância feliz e ao ar livre, cheia de piadas e travessuras, uma mistura de “Clube dos Cafajestes” com “As aventuras de Huckleberry Finn”.
Por isso, quando alcançou o sucesso no início dos anos 1980, depois de dois anos estudando na Universidade Estadual de Kent e de uma tentativa desajeitada na comédia stand-up — uma vez, fez a abertura de um show da Cher e foi um desastre —, Keaton imediatamente comprou uma fazenda perto da cidade de Big Timber, em Montana, onde ainda vive durante grande parte do ano. E, embora seu casamento com a atriz Caroline McWilliams tenha terminado em 1990 (ela faleceu em 2010), ser um pai presente foi sua prioridade, acima de certas considerações profissionais:
— Eu podia ter feito muitos filmes e ganhado muito mais dinheiro. Mas tive um filho porque queria ser pai. De verdade, aproveitei muito.
O orgulho evidente que Keaton sente por seu filho único, Sean Douglas, compositor e produtor musical que tem dois filhos, com frequência se reflete na conta do ator no Instagram, na qual tem quase um milhão de seguidores, e que se torna ainda mais cativante pela natureza despretensiosa de suas postagens, que muitas vezes lembram Tim Walz, governador do estado de Minnesota, em seu liberalismo folclórico e seu entusiasmo desmedido. (Os temas mais populares incluem pesca, beisebol, política, netos e capturas de tela aleatórias de sua televisão; na internet, foram escritas verdadeiras odes ao charme borrado e tremido dessas imagens, principalmente por admiradores millennials e da Geração Z.)
Sua reputação como um homem de Montana agora costuma se destacar em cada perfil de celebridade, por mais que Keaton tenha negado a ideia de que ele é um tipo de lobo solitário que fica em seu rancho, vivendo a própria versão de “Nada é para sempre”:
— Agora tenho quase tantos amigos lá quanto em Nova York, Los Angeles e no mundo inteiro. É um lugar que sempre atraiu escritores, pessoas excêntricas e pintores. Não é uma cidadezinha sem vida, atrasada, digamos assim.
Ele parece ter uma vida social ativa; sua conversa estava repleta de referências casuais a seus bons amigos “Carville” — o consultor político James Carville — e ao ator Griffin Dunne, mas também a muitos conhecidos que não têm uma página na base de dados on-line IMDb.
— Adoro pessoas que ainda têm aquela aura de que “você não sabe tudo sobre elas”, entende o que quero dizer? Vivemos em um mundo onde todos sabem tudo sobre todos, e o mistério meio que se perde. Michael entra na sala como um boxeador. Dança no ringue um pouquinho, e depois sai — comentou Burton, com quem Keaton manteve uma forte e improvável ligação ao longo dos anos, o príncipe gótico das trevas do cinema e o pai americano que gosta de pescar.
Keaton vê isso de uma perspectiva um pouco diferente:
— Sou do tipo quer ter o melhor dos dois mundos. Admito. As pessoas dizem: “Bom, isso não é possível.” E respondo: “Tem funcionado muito bem para mim”, reconheceu ele, com o olhar brilhando sobre uma xícara de café que esfriava.