COLUNAS
Não toque em nada
14 de dezembro, 2020Dentista, ver se os óculos ainda servem, visitar tio Nando, “tem que ir, é teu padrinho”, fazer uma aulinhas de matemática, o boletim tá bom, […]
Dentista, ver se os óculos ainda servem, visitar tio Nando, “tem que ir, é teu padrinho”, fazer uma aulinhas de matemática, o boletim tá bom, mas não tá ótimo. Todo julho e janeiro, igualzinho. E eu doida pra passar o dia à toa, usar as canetinhas que sobraram da escola, acordar e dormir tarde, chamar alguma amiga pra brincar.
Começava pelo dentista. E não era uma vez só não, tinha o dia da cárie, o dia da limpezinha, o dia do flúor. E bem com tia Olímpia, no consultório do centro. Ela tão organizada, desde a saia de couro, a meia calça sem nenhuma bolinha e a bota de salto, até as gavetas finas com os alicates, as brocas, tudo brilhando.
Mainha sentava na cadeira de escritório e as duas emendavam a mesma conversa cifrada que tinham nos jantares lá de casa. Uma com o cigarro na boca e a outra a abanar com o guardanapo a fumaça pra janela. Minha boca aberta equilibrando o sugador era como a dela, o mesmo guardanapo apertado na mão naquele ritual todo que parecia demorar muito mais do que precisava.
Não toca em nada que tá tudo esterelizado, no dia da cárie, do flúor e da limpezinha. É óbvio que eu sabia. Mas é que justo naquela vez, me dei conta dos botões. Eu já tinha entendido que havia botões, via o dedo de unha vermelha apertar a lateral da cadeira. Uns apertinhos muito rápidos. Mas talvez tenha sido a primeira vez que ouvi o som do botão, foi num momento raro de intervalo da conversa, uma pausa desconfortável que se deu entre as duas. Por isso olhei. Um barulho bom, sabe?
E quando olhei fui tomada por uma força, um desejo louco de apertar o vermelho. Eram dois cinzas e um vermelho. Apertei, mas apertei grandão. A cadeira foi baixando numa velocidade, bateu na bandeja, derrubou cada coisinha limpa, caiu no colo de tia Olímpia, mainha quebrou a xícara de café, gritou do queimado, gritou de susto, gritou da vergonha. E eu lá, dedo no botão, só soltei quando minha cabeça encostou no chão, o consultório já todo molhado, a secretária batendo na porta, as duas mulheres se olhando e a mangueirinha do sugador fazendo festa.
Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…