COLUNAS
O apagão por descaso, os atentados às eleições e um Maradona incompreendido
30 de novembro, 2020Comunicação & Problemas Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960) ([email protected] ou [email protected]) Descaso, desleixo Os apagões no Amapá duraram três semanas, […]
Comunicação & Problemas Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960) ([email protected] ou [email protected])
Descaso, desleixo
Os apagões no Amapá duraram três semanas, o que revela o descaso de sucessivos governos para com a Amazônia, justo a maior, ecologicamente decisiva e mais promissora das regiões brasileiras.
Suponha-se coisa semelhante na área metropolitana de Vitória – escolho de propósito a menos populosa fora da Amazônia: aceitar-se-ia tamanho desleixo? Pois, sendo amapaenses as vítimas, aceitou-se: treze dos dezesseis municípios apagaram-se e o melhor que os governantes (estaduais e federais) dignaram-se prometer foi solucionar o problemão em dez dias, que afinal viraram 21.
Falência múltipla
Imaginem os leitores do centro-sul brasileiro, que nunca viveram tais agruras, o que sofreram os amapaenses em três semanas sem energia elétrica.
As noites escuras assustam, favorecem o crime; água não chega em casa e falta refrigeração num calor de 30, 35, até 40 graus; perdem-se alimentos e não se pode repô-los, estragam também nos mercados; telefones fixos emudecem, não há como recarregar os celulares; computador?, internet?, nem pensar!; abastecer o carro é quase impossível e os transportes coletivos entram em colapso; falta tudo!, leitor…
Pois no pequeno Amapá, cujos cerca 900 mil habitantes merecem igual respeito que as dezenas de milhões de São Paulo ou Minas, pareceu natural ao poder público a expectativa de dez dias em falência de múltiplos serviços. Que afinal viraram 21.
Recado
Há ainda uma constatação que grita, clama e não é entendida, nem mesmo ouvida por estado, sociedade e imprensa: os sofrimentos infringidos aos amapaenses, causaram-nos a imprevidência e má gestão de empresas privadas (repito: privadas) às quais o estado incumbiu prestar serviço essencial e omitiu-se na fiscalização.
O desastre no Amapá manda recado aos que ignoram o fracasso privatista e pretendem agora alienar a Eletrobrás.
Ou os Correios, exemplo bem a propósito: até que ponto? empresários empenhar-se-ão em entregar cartas aos moradores de cidades pequenas como Serra da Saudade (Mg), Pilar (Go), Calçoene (Ap), todos credores de atenção igual à devida a cariocas, paulistanos mas cujo atendimento será financeiramente deficitário?
Sabotagem
A indignação ante o brutal assassinato do operário negro João Alberto por agentes de segurança brancos, contratados pela rede de supermercados Carrefour, monopolizou atenções da opinião pública e amorteceu a repercussão dos gravíssimos incidentes provocados por hackers associados a impulsionadores de notícias falsas que tentaram, às vésperas e no próprio dia de votar, sabotar os sites da Justiça Eleitoral e lançar dúvidas à segurança do processo, à lisura do pleito e à confiabilidade dos resultados – portanto às eleições, instrumento essencial da democracia.
A quem interessa?
Não conseguiram, mas o intento é em si inaceitável e requer responsabilização dos autores, bem como exame de possíveis interseções com políticos que aproveitaram o (falso) ensejo para denunciar erros, sem sequer nomeá-los e muito menos exibir provas, e vilipendiar nosso eficiente, seguro jeito de colher votos e apurá-los com a hígida tecnologia centrada na urna eletrônica.
Mais ainda, há que aprofundar a investigação e descobrir a quem interessa o atentado contra democracia. Sem avançar conclusões, percebo que no mínimo os autores terão sido estimulados pelos impropérios desfechados por Bolsonaro e sua turma contra os procedimentos eleitorais inaugurados no Brasil em 1996 e desde então à salvo de fraudes.
Erro zero, denúncia vazia
Nesses 24 anos e doze eleições jamais se comprovou, ao menos se denunciou concreta e especificamente alguma suspeita de fraude – tipo “…na zona eleitoral x, seção y de tal cidade e estado os votos do partido z…” etc.
E o sistema tem sido repetidamente testado; a cada novo pleito os mais ousados hackers (e quem mais quiser) são desafiados a burlar as defesas e ninguém teve sucesso.
Mesmo assim, como de hábito sem apresentar nem indícios, ainda na semana passada o ex-capitão atacou a sistemática eleitoral, reclamando dessa vez da apuração – não por acaso ao constatar o mau desempenho de quase todos os candidatos que apoiou (apoia).
Cópia mal feita
E não foi a primeira vez. Antes do malfadado pleito que o elegeria em 2018 ele como que prevenia o feito a afirmar que os adversários falsificariam votos para impedir sua ascensão.
Interpreto-o, se não consigo reproduzir fielmente seu rude linguajar: “Se eu não ganhar será fraude”, mantendo desde então a acusação (sempre sem provas) de que teria vencido no primeiro turno.
Para vergonha dos brasileiros, Bolsonaro não se peja em cometer péssimo plágio de exemplo ruim, seu ídolo Donald Trump, aquela avantesma demitida com opróbio que esperneia inutilmente, a repetir denúncias tão vazias quanto o crânio sob o ridículo topete.
Traquinagens inúteis
Entretanto o trêfego Donald teria, eventualmente, remotas possibilidades de êxito. Suas antecipadas denúncias de fraude (pode isso?) quiseram preparar a opinião pública, sobretudo apoiadores mais acríticos, para discutir nos tribunais a lisura das eleições, tendo a seu favor os complicadíssimos processos de votações estaduais, presididos localmente, para conformar um anacrônico colégio eleitoral; tais esquemas tendem a gerar dúvidas, quiçá legítimas que desta vez estão sendo dirimidas inapelavelmente.
Já as traquinagens de Bolsonaro nem isso têm, no ambiente automatizado que a Justiça Eleitoral brasileira construiu e eficazmente administra.
Solidário, voluntarioso
Pois é, Maradona morreu e a comoção foi exatamente a esperada na Argentina, assim como em outras partes do mundo e especialmente em Nápoles. Não em toda na Itália, porém na cidade a cujo clube mais popular ele deu dois campeonatos nacionais e um europeu, façanhas inéditas e não repetidas até hoje.
Disse que não na Itália toda porque o voluntarioso craque não o era só no futebol: “Em Nápoles, como os napolitanos!”, terá pensado e, solidário, assumiu-lhes a revolta ante o preconceito sofrido pelos povos do mezzogiorno, discriminados pelos das ricas regiões do norte.
E assim abordo uma faceta da múltipla, contraditória personalidade de Diego Armando Maradona Franco, objeto de controvérsias muito conhecidas e, várias delas, pouco compreendidas.
Em dois mundos
Quero falar de sua participação em atos, até projetos políticos e cogito que se deveria atribuir-lhe título que o aproximaria de Giuseppe Garibaldi, com sinal (geográfico) trocado: herói de dois mundos.
Explico: o italiano, que tem nesta expressão um aposto a seu nome, lutou pela unificação dos estados autônomos e não raro inimigos da península, processo de que resultou a nação italiana; na América, mais exatamente no Rio Grande do Sul irridente contra veleidades autoritárias do poder central, Garibaldi foi bravo combatente da Revolução Farroupilha. Aqui não houve sucesso militar mas a insurreição e suas conquistas políticas são motivo de justo orgulho dos gaúchos.
Compreensão tatuada
Assim como no sul Itália, no cone meridional da América o inquieto Maradona solidarizou-se com os oprimidos. Primeiro com os então duplamente humilhados argentinos – pelos ingleses que os derrotaram na guerra das Malvinas e, sobretudo, pelos generais-ditadores que os atiraram na campanha suicida enquanto perseguiam, torturavam e matavam quem reivindicasse democracia.
Logo Diego compreenderia a natureza mais ampla da luta e expressou-a, a seu jeito, com a famosa tatuagem de Che Guevara, um argentino que quis conhecer e afinal mudar a América Latina depois de percorrê-la de motocicleta, aventura imortalizada num belíssimo filme… argentino, por supuesto.
Nada a estranhar
Longe de ser um estudioso da história de nuestra America Maradona entretanto sentiu, mais que entendeu a grandeza do gesto do compatriota que se aliou aos rebeldes da Sierra Maestra para derrubar a mais cruel, horrenda ditadura de seu tempo, que fazia de Cuba o quintal dos mais escusos interesses do capitalismo do Norte e de Havana o bordel de mafiosos e outros ricos de igual extração – todos falantes de inglês.
Nenhum excesso revolucionário ou equívoco da ditadura extemporânea desmerece os feitos de Che, Fidel e compañeros – e não deveria estranhar que Maradona considerasse um segundo pai o ‘comandante’ que o acolheu num de seus piores momentos.
O que é estranho, …
E não foram poucos os momentos ruins de Diego. Intenso em tudo o que fez, também o foi nas derrapadas no lodaçal das drogas, álcool ou quando inadvertidamente atolou em pântanos políticos ao mal avaliar pretensos emuladores de Fidel.
Estranha mesmo é a interpretação dominante ainda agora, nos copiosos noticiários, a atirar no mesmo charco seus erros e acertos, as melhores e as piores escolhas.
… muito estranho
Arrisco explicação, certamente parcial e longe de explicar os percalços de uma vida tão plural: os bens situados no mundo, especialmente neste nosso pedaço de mundo em que a maioria situa-se muito mal, até hoje não lhe perdoam a denúncia da extrema desigualdade, muito menos o desejo de resgatar a esperança que se esvai pelas venas abiertas de America Latina, como no título do livro-manifesto do amigo e biógrafo Eduardo Galeano.
Bola e poesia
Menos mal que não se estranhem americanos do sul, centro e norte, napolitanos e milaneses, argentinos, brasileiros e todos mais que gostam de esportes e encantam-se com o futebol, quanto à absoluta maestria em sua arte do “Pibe de oro”, aposto emprestado ao recém-descoberto gênio pouco mais que adolescente em meados dos anos 1970.
Todos nos rendemos à poesia que Maradona produziu com os pés que acariciavam a bola amiga, dócil, que passeou pelos gramados como quem escreve os versos de um soneto cujo fecho de ouro é o gol.
Gratidão
Não passou em branco na cobertura da imprensa a placentária intimidade de Diego com a bola, assim como a gratidão à companheira de aventuras numa frase romântica, que pediu fosse seu epitáfio. Talvez citasse, em feliz remissão, o ilustre antecessor Alfredo Di Stéfano, porteño que inaugurou o prestígio internacional dos craques argentinos e, com eles, dos demais sul-americanos: don Alfredo ergueu no jardim de sua casa em Madri uma coluna em cujo topo reinava uma bola, acompanhada da frase
“Gracias, vieja!”.