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O estar

19 de junho, 2023

Tive um sonho desses que movimentam essa noite. Era um lugar morninho. Uma loja/museu, ou talvez uma loja/galeria. Paredes, tapetes, tecidos que caiam propositadamente do […]

O estar

Tive um sonho desses que movimentam essa noite. Era um lugar morninho. Uma loja/museu, ou talvez uma loja/galeria. Paredes, tapetes, tecidos que caiam propositadamente do teto, do tom de verde mais bonito que eu já vi. Tinha um certo cheiro de conforto e, pensando agora, talvez tivesse o mesmo cheiro de figo que senti uma vez, também numa loja, há uns dez anos. Nunca esqueci desse cheiro. Tudo que estava à mostra naquele espaço, o do sonho,  me interessava. Não pra comprar, mas pra olhar grande, como quem respira a partir do quinto segundo.

Ontem, andando com a minha filha mais velha, passamos por uma luz verde diante de um pet shop aqui pertinho. A fachada não tinha charme nenhum, mas aquela luz me pegou meio sem aviso. Me enfiou no peito uma sensação tão completinha, uma sensação de chá quando passa pela garganta e depois esquenta o tronco inteiro, sabe assim? Acho que foi esse o verde que migrou para o sonho.

Senti parecido também ontem mesmo na yoga. Do meio pro fim da aula me dei conta desse preenchimento de vida, quase que corporal. Essa coisa de, estar atenta ao ir e vir do ar, ao abdome contraído, à coluna esperta, à mínima gotinha de suor no pescoço e, ao mesmo tempo, não se deixar tomar por nenhum desses acontecimentos. Deve ser esse o estado de presença a que se referem os yogis.

No entanto, acordei em total oposição ao maravilhamento de domingo. Atrasada, com fome e frio, já cansada para uma semana que nem começado direito tinha, respiração curta e incompetente, em estado de ausência. Fiquei com essa palavra, o estado. Estar é verbo sem definição. Estar é diferente de ser. É temporário. 

Faz também uns dez anos que fui ao lançamento de “O ser no gerúndio” de Eduardo Rosenthal, na livraria do Conjunto Nacional que já não existe mais. Naquela ocasião, experimentei o “não gostaria de estar em nenhum outro  lugar, nem em nenhum outro tempo que não este”. O autor fez uma fala que sempre carrego comigo. Assim como carreguei seu  livro, ora em casa, ora no consultório, independente de em qual casa ou em qual consultório eu estivesse. Na primeira página, uma dedicatória que diz: a Roberta, com votos de que você seja cada vez mais Roberta. Ser no gerúndio. Ser sendo. Estar estando. No verde ou em qualquer outro tom, mas sempre na nossa direção do morninho de dentro. É nisso que eu quero pensar hoje. Boa semana, queridos.

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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