COLUNAS

O enigma de um dia

28 de abril, 2025 | Por: Roberta D’Albuquerque

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

Abandonei meu mestrado meses depois da qualificação. Se a vida acadêmica fosse vida religiosa,
seria considerado um pecado. A qualificação é uma pré-apresentação do projeto. É como se a
instituição assinasse embaixo pra você fazer as correções de rota necessárias e entregar de uma vez
o trabalho pronto. Tava quase pronto, mas desisti bem ali. Isso faz uns 20 anos. Aí que passei a fazer
um milhão de pós-graduações pra compensar o não mestrado.

Fui feliz com quase todas. Só que tem sempre uma melhor. Era uma pós em teoria de arte no MAC
da USP. No MAC mesmo, lá dentro do museu, quando a sede ainda ficava na cidade universitária. Eu
entrava naquele lugar como quem entra em uma igreja, num respeito, numa devoção. Eram duas
aulas na semana, quase sempre no auditório. Mas às vezes a gente ia na sala de exposição estudar
uma obra ou um artista específico. Nesses dias eu sentia uma vontade tão grande de que o mundo
inteiro estivesse ali. O mundo inteiro. O povo que já morreu e o povo que ainda vai nascer. Todo
mundo tinha que ter o direito de estar no museu fechado para visitantes olhando pra cada
milímetro de um pouco mais de 1 metro quadrado de tela que são ao mesmo tempo um pouco mais
de 1 metro quadrado de tela e o mundo inteiro. Eu saía dessas aulas com um pulmão de 20 metros
quadrados. Dava pra respirar uns 20000 litros de ar por minuto com meu pulmão novo.

A sede do MAC mudou e toda vez que encontro um dos quadros que estudamos na sede nova, meu
pulmão cresce mais um pouquinho. Ontem fui conhecer o anexo do MASP. Há qualquer coisa no
ambiente de um museu que nos altera mesmo o fôlego. Vão lá, minha gente (nas terças e nas sextas
a partir das 18h o ingresso é gratuito). Entrei na sala do segundo andar onde está a vídeo-instalação
de Isaac Julien e fiquei assim meio boba. Eram 9 telas dispostas umas de frente para as outras. Nas
telas, espaços projetados por Lina Bo Bardi, textos dela lidos por Fernanda Montenegro e Fernanda

Torres e o Balé Folclórico da Bahia em coreografia de Zebrinha. Cheguei na metade da projeção sem
entender muito o que estava acontecendo, quase desatenta, até que uma bailarina (meio orixá, meio
bailarina) começa a girar a saia vermelha diante da escada do MAM da Bahia. Eu lembro do
primeiro dia que fui ao MAM da Bahia com a mesma nitidez do dia que desisti do mestrado. Tudo ao
redor meio sem foco – Por que fui? Com quem eu estava? Fazia calor ou frio? O que estava exposto?
No museu e na desistência – mas uma imagem ficou inteira preservada dentro de mim: a da escada.
Nunca esqueci da escada do MAM da Bahia. Pesquisando sobre a vídeo instalação, vi que ela se
baseia na seguinte citação de Lina Bo Bardi. “O tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado
no qual, a qualquer momento, fins podem ser escolhidos e soluções inventadas, sem começo nem
fim”. Igualzinho à escada. Acordei pensando no giro, no sobe e desce do tempo e no meu desejo de
fôlego pra mim, pra tu e pra todo mundo. O povo que morreu e o povo que ainda vai nascer. Boa
semana, queridos.

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21 de abril de 2025

Qual é o seu perfil de investidor?

O Bitcoin está em alta. Tá vendo, Rô? Eu te disse que valia a pena investir, me diz (e me disse mesmo) meu analisando das 8h da manhã de ontem. Pedi que ele explicasse um pouquinho melhor como funciona (pra ele) o Bitcoin. É o que fazem os analistas na maior parte do dia. Perguntam. Dos temas que já sabem de trás pra frente e dos outros sobre os quais entendem bulhufas. A gente pergunta pra abrir terreno. Na resposta, o analisando desmonta o discurso e diz de si, do que sente, do que pensa.

De Bitcoin entendo bulhufas, embora já tenha ouvido essa explicação 500 vezes – parece que é meio moda entre o povo que frequenta meu consultório fazer esse tipo de investimento. A fala quase sempre começa com o básico do “é uma criptomoeda” e termina cada um pra um lado porque o interesse da escuta tem muito mais a ver com o investimento psíquico (libidinal) do que com o financeiro.

Nunca investi em criptomoeda. Mas amo criptograma, aqueles da Coquetel, sabe? Funciona um pouquinho como criptomoeda. Você não tem grandes certezas, mas há pistas. É preciso apostar. Na criptomoeda não dá pra cravar se vai subir ou descer, nem quando, nem quanto; se vale a pena tirar agora ou colocar mais dinheiro pra tirar depois. No criptograma, numa língua cheia de sinônimos feito a nossa, às vezes uma escolha errada muda o rumo da página inteira e olha que a página é de papel jornal e apagar sem rasgar é quase tão arriscado quanto o bitcoin.

Passei o dia pensando nisso, nos riscos, nas demandas e nos ganhos de um investimento. Desde os mais administráveis como uma escolha profissional, a compra de um imóvel, aos mais complexos como os que dizem respeito aos relacionamentos, ou a decisão de ter um filho, os quandos, os com quem, e os comos.

Meu analisando das 8h veio ao consultório para fazer terapia de casal. Estavam diante de alguns desses dilemas complexos. Tentaram, mas acabaram se separando. Ele voltou anos depois para começar uma análise. Anda escrevendo novas páginas, novas combinações de letras. Apaga devagarzinho quando é preciso, com cuidado pra não rasgar, mas sabendo que restarão as marcas. Tem dias que me conta da ex-companheira. Está ótima, teve gêmeos em julho. Lhe quer bem. Também viu crescer a barriga da companheira atual (mais de uma vez, inclusive), tem se aprofundado nas próprias questões, feito as elaborações possíveis. Sei lá, às vezes também tenho vontade de lhe dizer “tás vendo, vale a pena investir”. Boa semana, queridos.

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14 de abril de 2025

É o puro creme do milho

Ontem eu deitei umas 10h da noite. Tinha tirado um cochilo das 7h às 9h. Não recomendo. Acordei confusa, com sede, ainda mais cansada e se me perguntasse o meu nome, provavelmente eu demoraria pra responder.. Pensei que faria sentido uma meditação guiada pra entrar no sono grandão e, quem sabe, não acordar às 4h como tem acontecido quase todos os dias desde a chegada da viagem. 

Quando na viagem, fiquei impressionada com o silêncio. Havia silêncio disponível até no metrô. Faz-se urgente experimentar uma quantidade menor de decibeis em minha vida, pensei. Tenho tentado. Ocorre que moro em uma avenida com barulho de ônibus, de moto, de comemorações dos jogadores de beach tênis na quadra da frente (que oferece turmas desde às 5h da manhã, que tal?), de reformas no próprio prédio e de  um prédio inteiro sendo construído no terreno vizinho de muro. Se for mês de carnaval tem trio elétrico na rua de trás e, em qualquer mês do ano, inclusive no do carnaval – quase esqueci de dizer – tem o carro da pamonha, o do chocolate, o do morango e o do ovo. Todo dia. Mais de uma vez por dia.

Aí eu na cama às 10h da noite ouvindo a meditação guiada. O moço falava tão arrastado, tão arrastado, que eu botei no 1,5x – pra vocês posso contar. Eu lá, dando o melhor de mim pra pensar no azul-claro brilhante que ocupava meu corpo na inspiração e no laranja-amarelado que ocupava o mundo na expiração, passa uma moto com escapamento a milhão. Cai azul, laranja e amarelo pra tudo que é canto. Demorou uns 3 parágrafos do moço pra eu reorganizar. E assim foi até ele mandar um namastê. 

Respondi concorrendo com o barulho de um caminhão desbalanceado e peguei no sono. Tive o melhor sonho dos últimos tempos. Eu estava sentada no gramado que o moço descrevia depois do esquema do azul-claro em posição de lótus e com uma roupinha esvoaçante daquelas que o povo usava no céu da novela A Viagem. Éramos eu, a Christiane Torloni, o Antônio Fagundes. Todo mundo concentradinho, cabelos ao vento. Quem falava com a voz do professor era Guilherme Fontes, que não estava de preto. Ele lá mandando a gente inspirar profundo, e alongava o “un” profuuuuuuuundo. A gente, quase que hiperventilando, obedecia. Até que anunciava o momento dos mantras e repetia na velocidade 0,5x. Pamonha, pamonha, pamonha, pamonha de piracicaba, é o cural de pamonha, é o puro creme do miiiiiiiiilho. Fazia vrum, vrum, vrum, feito criança imitando motor de carro. A gente repetia. Depois, gritava ponto, ponto, poooonto e emendava um “eu falei faraóoo, êeeeeeeeee, faraó. Acordei às 4h de novo. Mas pelo menos, acordei rindo. Força, foco e fé pra gente, galera. Vou tentar deitar às 9h hoje. Depois, eu conto.

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10 de abril de 2025

As entranhas do porco

Meu namorado diz que quem volta igual de uma viagem não precisava nem ter viajado. É mesmo, né? Ou a gente se deixa transformar (seja a viagem da natureza que for), ou a vida perde quase toda a graça. Mesmo assim confesso ter me sentido um pouquinho pressionada hoje cedo, no primeiro dia do pós-férias. Será que fui competente na tarefa de mudar ou voltei igual que nem?

As semanas de Japão foram impressionantes, disso não tenho dúvida. Há um jeito de estar no mundo meio outro do outro lado do mundo. Vocês assistiram Dias Perfeitos? Sabe aquele “todo dia ele faz tudo sempre igual” que dá uma admiração e um espanto do mesmo tanto? Senti isso o tempo todo. Fora que viajei com minha irmã e minha mãe. Foram 15 dias dormindo e acordando com elas. Não fazíamos isso desde 1991, o último ano em que moramos as 3 juntas. Quem volta igual de uma imersão familiar não precisava nem ter mergulhado, né? 

Chegamos na semana exata em que as cerejeiras floresceram em Tóquio, as flores duram 7 dias. Todo dia de manhã, minha irmã acordava mais cedo, meditava, fazia sua série de Yoga, tomava chá e caldinho quente. Todo dia minha mãe nos lembrava de nossa sorte de estarmos juntas, elogiava as lichias descascadas, se comovia com a beleza das flores. Sabe aquele “todo dia ela faz tudo sempre igual” que dá uma admiração e um espanto do mesmo tanto? Senti isso o tempo todo. 

Numa visita a um jardim, escutamos a explicação de que parte do simbólico da terra “penteada” – aquela que a gente reproduz com ferramentas pequenininhas nos jardins em miniatura – era o estar preparado, acordar de manhã e preparar-se. Aquilo entrou tão fundo em mim. Uma moça do meu lado não conteve a angústia de urgência de utilidade tão ocidental nossa: preparado pra que?, perguntou. Ué, pra ver as flores, só duram 7 dias. Assim como quem acorda mais cedo e estica o tapetinho de yoga no quarto de hotel, assim como quem não cansa de elogiar a lichia descascada, assim como quem dobra o futon sabendo que vai desdobrar no fim do dia. 

Hoje eu cheguei mais cedo no consultório pra arrumar a sala pro primeiro analisando da segunda-feira. Em cima de minha mesa o caderno estava aberto com notas que tomei na sexta pré-férias. Eram 6 itens: 1. As entranhas do porco; 2. Dois dentes do Carlos Augusto; 3. Não esquecer, 15h30; 4. Olhar atravessado; 5. Só se for verde; 6. Página 27 e 33. Foi eu que escrevi, é minha caligrafia, mas foi outra eu. Não faço a menor ideia do que Roberta de lá tinha que fazer às 15h30, deve ter esquecido, que olhar foi esse, de que livro eram as páginas 27 e 33, o que havia de maduro ou de verde, quem é Carlos Augusto ou por que me preocupavam as entranhas do porco. Talvez eu não tenha voltado igual. Muita terra ainda pra pentear nesse jardinzinho, minha gente. Feliz por estar de volta com vocês e ainda pensando na profundidade de mergulho. Boa semana, queridos.

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17 de março de 2025

Os mares do Japão

A mãe de criança pequena – fim de semana sim outro não – quando menos espera, está sentada em uma mesa de plástico no térreo de um prédio onde nunca esteve antes, ouvindo caixa de som estourada, grito de criança e de monitor (que costuma ser mais insistente e estridente do que o da criança), segurando um balão que vai pipocar, embora numa tentativa dedicada para que não estoure, com a sola de sapato preguenta de brigadeiro e talvez a outra mão também preguenta por segurar um brigadeiro reservado que pode virar o próximo brigadeiro pisado, conversando com uma outra mãe na mesma circunstância nunca antes vista, e com quem provavelmente não se tem nada em comum além do aniversariante da vez, por assim, umas duas ou três horas de um sábado à tarde ou até que alguém resolva cantar parabéns. Se a mãe tiver mais de um filho, talvez a cena se dê todos os fins de semana.

Pois que uma vez eu estava neste tipo de sabado e minha interlocutora desconhecida me confessou uma angústia. O filho dela, que devia ter uns 6 anos, como tinha a minha mais velha à época, lhe dizia todos os dias na hora de dormir que tinha vindo “dos mares do Japão”. Descrevia em detalhes a travessia feita a barco e como eram enormes as ondas, o que vestiam, o que estavam com ele, como era a moça que o carregou nos braços até ela, o porto, os temporais, as músicas que ouviram no caminho. “Eu sonho com isso, mas sei que não é sonho, mãe”, ele dizia. Aquilo me impressionou horrores. Nunca esqueci.

De forma diferente, a minha mãe também tem um certo fascínio pelo Japão. Sonhou por muito tempo com uma viagem. Mais de uma vez, estudou possibilidades de roteiros, organizou a buscou os melhores voos, os hoteis que fariam sentido, as cidades que gostaria de visitar, os parques, os templos. Resolveu ir em 2019, partiria no primeiro semestre de 2020. Não sabia que na data do embarque viveríamos o auge da COVID 19. Não foi. De lá pra cá, o Japão dela, parecia um pouco com o do filho da moça do aniversário. Um Japão pouco palpável, talvez até, um Japão de uma outra vida.

Quando penso nas festinhas que descrevi há pouco também tenho essa sensação de outra vida. Minhas filhas são outras, as festas são outras, as travessias e as ondas são outras. Ser mãe de filhas adultas é quase que uma outra categoria de maternidade. Assim como ser filha adulta é também quase uma outra relação, embora seja tão a mesma. No próximo sábado, embarcaremos minha mãe, minha irmã e eu, para Tóquio. O objetivo da viagem é vê-la feliz no próprio sonho. Levo comigo o menino e o sonho dele e a moça que o carregou no colo em meio às ondas gigantes. Tô numa sensação danada de que estarei bem acompanhada. Na volta, conto como foi. Beijo grande, queridos. Até lá.

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