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VARIEDADES

Presença de Felipe Neto na Flip divide mercado editorial e influencer vira ‘convidado da discórdia’

11 de setembro, 2024 / Por: Agência O Globo

Parte do segmento aponta youtuber como ‘estranho no ninho’ na 22ª edição da festa e acusa evento de ‘trocar conteúdo por likes’

Presença de Felipe Neto na Flip divide mercado editorial e influencer vira ‘convidado da discórdia’
Felipe Neto participará de mesa na Flip — Foto: Foto de arquivo

Desde o anúncio da programação da 22ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na manhã de segunda-feira, um elefante se instalou na sala do mundo editorial. Poucos falam em voz alta, mas a polêmica ganha volume nos bastidores — e tem grandes chances de se alongar de forma mais pública até o início do evento, que acontece de 9 a 13 de outubro.

O elefante tem nome: Felipe Neto. O influenciador, produtor de conteúdo, polemista, empresário e agora escritor e criador de clube de leitura foi confirmado como uma das atrações da programação oficial da festa. Ele falará sobre o seu livro, “Como enfrentar o ódio” (Companhia das Letras), em uma mesa com a jornalista Patrícia Campos Mello.

Profissionais do mercado editorial ouvidos pelo GLOBO se mostraram divididos com o anúncio. Mesmo quem elogiou sua presença admitiu que percebeu muita gente torcendo o nariz. Há os que elogiam o esforço da festa em “atrair um público diferente” e os que afirmam que o influenciador não faz literatura — e que, portanto, não deveria estar lá. Procurado, Felipe Neto não quis comentar.

Uma coisa é certa: o influenciador não é o tipo de convidado que costuma aparecer nas programações da Flip. Ainda que figuras mais pop sejam comuns na história do evento, talvez nunca tenha havido uma tão pop quanto Neto, que criou fama nos primórdios do YouTube e só recentemente passou a demonstrar interesse por literatura. Para a editora Simone Paulino, da Nós, ele será uma espécie de “estranho do ninho” no evento.

— A Flip já teve nobéis como Annie Ernaux (francesa) e J.M. Coetzee (sul-africano). O livro dele é quase de autoajuda. Não tem o perfil da Flip — diz Simone, que elogia a curadoria da edição, assinada por Ana Lima Cecilio, mas questiona se Felipe teria sido convidado se não fosse publicado pela Companhia das Letras.

‘Descaracterização’

“O que ele tem a ver com a Flip?”, pergunta, reservadamente, um escritor que conhece bem os eventos literários. Ele especula que a festa acalenta um desejo secreto: ser tão pop quanto as bienais (e o influencer, vale lembrar, arrastou uma multidão à Bienal do Livro de São Paulo, no último sábado). Esse aceno pop, segundo ele, “descaracteriza” o evento literário, que perde sua identidade.

Uma profissional destacada no mercado editorial disse que a feira está “trocando conteúdo por likes”. Outro editor, que questiona a necessidade de investir “no polemismo das redes”, afirma que a aposta da curadoria perde “do ponto de vista da valorização da cultura e do pensamento”.

Felipe Neto tem uma trajetória múltipla e repleta de reviravoltas. No início dos anos 2010, ele chamou atenção no Youtube com conteúdo superficial e vídeos no estilo “contra tudo que está aí”. Nos últimos anos, porém, foi se reinventando para um público mais adulto. Envolveu-se em polêmicas dizendo defender a democracia, foi alvo de campanhas de fake news e, desde 2021, começou uma relação mais séria com a literatura, multiplicando esforços para democratizar a leitura.

Curadora da Flip, Ana Lima Cecilio afirma que a presença de Felipe na programação foi um desejo dela e que a Companhia das Letras não fez “nenhum movimento no sentido de convidá-lo”.

— Felipe Neto não é um influenciador de consumo ou de games. Desde 2018, vem ocupando um lugar no espaço público com muita responsabilidade e fez um mea culpa de postura do passado. Ele optou por se posicionar em favor da democracia e em “Como enfrentar o ódio” fala do papel que os livros tiveram para essa tomada de consciência — diz Ana. — Dá para falar de debate político, ódio e polarização no Brasil sem passar por Felipe Neto? Até dá, mas será uma discussão mais rasa, talvez acadêmica demais, pouco contundente e não vai atingir tantas pessoas.

‘Gestos favoráveis’

Diretor editorial do Grupo Record, Cassiano Elek Machado lembra o papel de Felipe Neto na Bienal do Livro de 2019, quando se opôs à censura da HQ “Vingadores — A cruzada das crianças”, que mostrava um beijo gay na capa. Como resposta, o influenciador organizou uma ação para distribuir mais de dez mil livros com temática LGBT no evento.

— Embora não seja o palestrante típico das Flips, não acho a presença dele descabida — diz. — A temática do livro e a conversa com Patricia Campos Mello são pertinentes ao festival e Felipe tem feito inúmeros gestos favoráveis ao universo do livro e lutando pela liberdade de expressão.

Rafaela Lamas, editora da Autêntica, diz que é “importante olhar para esse nome inserido num projeto mais amplo da curadoria, que encontrou ótimas soluções para falar de temas incontornáveis da contemporaneidade por meio da literatura”.

— Fake news, polarização, redes sociais, por exemplo, são alguns desses temas “incontornáveis” — diz ela.

Outro profissional do livro, que preferiu não se identificar, observou que a formação do público, um problema histórico no mercado, ainda é um assunto pouco falado em festivais. Para ele, “Felipe Neto vem fazendo um papel importante na democratização da leitura”, e por isso “a participação dele em qualquer festival literário é bem-vinda”.

Outras polêmicas

Não é a primeira vez que o anúncio de uma figura pop causa polêmica na Flip. Em 2010, houve quem torcesse o nariz para a presença da best-seller chilena Isabel Allende. Na época, o curador Flávio Moura disse à imprensa que Allende era uma “figura interessante”, cuja trajetória estava “colada à da América Latina” e que tinha “uma coisa magnética com o público”. Já a autora disse: “Não se pode agradar a todos.” Moura, que hoje é diretor geral da Todavia, elogia a presença de Felipe Neto na programação da Flip.

— Ele dá uma contribuição extremamente relevante ao debate hoje — afirma o editor. — É uma figura cujas opiniões repercutem, que fala com o público como poucas outras no Brasil.

Editor e ex-curador da Flip, Paulo Werneck diz que, se estivesse na mesma função hoje, convidaria Felipe Neto. Ele vê com bons olhos “um ambiente de mistura”, que leve em conta um espaço que os influenciadores possam ocupar.

Presidente do Grupo Companhia das Letras, Luiz Schwarcz lembra que a Flip, desde o início, contou com a autores de não ficção:

— O livro é um relato de alto nível sobre ódio que predomina nas redes sociais e como a internet funciona por dentro. É também o relato de uma pessoa que ajudou na luta pela democracia. Só isso já justificaria a presença dele na Flip.


BS20240911030109.1 – https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/09/11/presenca-de-felipe-neto-na-flip-divide-mercado-editorial-e-influencer-vira-convidado-da-discordia.ghtml