Uma arte universal
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Eu e meu pai nos falamos pouco ao telefone. Nossa ligação é de outra ordem. Estamos unidos pelos laços de sangue, naturalmente, mas não só. É a maneira de olhar o mundo, de experimentar o mundo que nos põe próximos desde que sou muito pequena. Nossa comunicação flutua entre memes, fotos e impressões sobre o …
Continue reading “Que eu brinque, que tu brinques, que ele brinque”
Eu e meu pai nos falamos pouco ao telefone. Nossa ligação é de outra ordem. Estamos unidos pelos laços de sangue, naturalmente, mas não só. É a maneira de olhar o mundo, de experimentar o mundo que nos põe próximos desde que sou muito pequena.
Nossa comunicação flutua entre memes, fotos e impressões sobre o andar da carruagem que trocamos, aqui e ali, no whatsapps. Talvez ele não saiba, mas independente da frequência de contato, o carrego comigo sempre. Não há um único dia – e olha que já somo 43 anos – em que não lembre de uma fala sua, uma história, uma piada.
Na última terça ele me mandou uma foto paramentado com equipamentos de segurança, e usando o seu uniforme do SAMU. Lembro de uma outra foto que tiramos com o mesmo uniforme, quando minha filha mais velha era um bebezinho em seu colo. “Desse lado Beta, pra aparecer bem o logo.” Orgulhoso pelo registro da escolha que fez no terceiro tempo de sua potente carreira de médico.
Fiquei comovida com a mensagem. Primeiro por medo. Tenho ele nas ambulâncias e minha irmã nas UTIs de Covid. Punk. Depois por alegria. É inspirador demais ver de perto a coragem.
Na sexta, fim de noite, recebi um outro recado seu. “Beta, passei o dia esperando a sua mentira, cadê tu?” Primeiro de abril é data nossa. Revezamos de um ano para o outro – embora devo dizer que estou provavelmente ganhando nessa -, mas somos grandes talentos do dia da mentira.
Fiquei comovida com a mensagem. Primeiro por saudade. Tenho ele, minha irmã, minha mãe, meu irmãozinho, tios e primos a grande distância de tempo e espaço. Punk. Depois por alegria. É bonito demais ver de perto a matéria que nos faz amar quem amamos.
Agorinha mesmo, li uma frase do Ailton Krenak que dizia assim: “Temos de ter coragem de ser radicalmente vivos, e não ficar barganhando a sobrevivência”. Meu pai tem 72 anos, podia estar em casa, eu talvez preferia que estivesse. Mas está na rua, fazendo o que faz há anos, entregue ao seu trabalho, no momento mais perigoso, no país mais perigoso em que poderia estar. Radicalmente ativo. No paralelo e com a mesma intensidade, mantém viva a capacidade de brincar. De esperar a minha mentira, me convidar a brincar com ele. Coisa linda. Boa semana queridos.
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