COLUNAS

O vento cantarino

2 de junho, 2025 | Por: Roberta D’Albuquerque

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

Não sei você, mas às vezes eu penso tanto sobre Itaquaquecetuba. Nunca fui lá, mas assistia Silvio Santos quando menina e lembro como se fosse hoje do “Cadê a caravana de Itaquaquecetuba? Quero ouvir a caravana de Pindamonhangaba!”. Lembra? Eu ficava horrorizada, embora conhecesse de perto o potencial trava línguas de Sirinhaém, Tracunhaém, Tuparetama e Tupanatinga, cidades do meu estado. É que Itaquaquecetuba vai um dedinho mais pra frente, vai não? Imagina o coitado do itaquaquecetubense (ou itaquaquecetubano) em idade de alfabetização, que trabalheira danada. Ou mesmo o cidadão já alfabetizado escrevendo uma carta ou a página de um diário: “Itaquaquecetuba, 2 de junho de 2025. Talvez hoje eu tenha me apaixonado por fulana de tal”. Esse merece um olhar recíproco de Fulana e que sejam felizes para sempre. 

Fui dar Google pra começar o parágrafo contando qualquer coisa como esta cidade que tem clima subtropical úmido, 82 km 2 e bla bla bla, mas o Google se saiu com um parágrafo muito melhor. Dizia assim: Itaquaquecetuba, ou simplesmente Itaquá, é um município brasileiro do estado de São Paulo, localizado na Região Metropolitana… Itaquá é maravilhoso.

Ontem, eu voltava do interior e toda vez que Itaquaquecetuba aparecia na placa eu imaginava ela tão folgada. Sabe esse povo que não quer nem saber se tá gastando mais espaço do que os outros? Pede palavra em palestra e fala mais que o palestrante, domina (mal) o assunto em mesa de bar, sai antes da conta e deixa o equivalente a uma cerveja no centro da mesa como se não tivesse tomado água, nem caipirinha, como se não tivesse comido da porção de filé com batata frita que ela mesmo pediu, como se nunca tivesse ouvido falar dos 10% do garçom? Pronto, pra mim Itaquá é dessas. 

Vê Itu. Itu tem 640 km 2, rapaz, cheia de orelhão gigante, e tá aí, quietinha, ocupando 3 letras da placa de trânsito. Exu em Pernambuco é igualzinho. Fez Luiz Gonzaga, Luiz Gonzaga, Lu-iz-Gon-za-ga  e fica tranquila no cantinho dela sem aperrear um único designer do Detran. 

Não. Na verdade, deve ser massa, Itaquaquecetuba. Pindamonhangaba também. Desculpa. Sabe como se chama isso? Chama-se junho. Quando maio acaba, vem aquele cheiro de milho até no pão de forma, vai dando um vento cantarino, um quente de fogueira, uma vontade de pendurar bandeirola colorida no meio da sala, uma Luiz Gonzaguisse tão grande, tão grande, gigante mesmo, que o p ernambucano fora de Pernambuco implica até com placa de trânsito. Ô, rapaz. Como é que faz, eim? Boa semana, queridos, arranjem aí uma festinha de São João pra vocês.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

26 de maio de 2025

Ferramentas/Ortografia e gramática/verificação

“Bom dia, Roberta. Uma dúvida aqui: análise cura mau-olhado?” Começava assim a mensagem que recebi sexta-feira no e-mail do consultório. E seguia explicando “Veja, não é papo de ´ai, porque os invejosos então me rogando praga´e essas coisas. É um auto-mau-olhado. E é tão forte, tão eficiente, que tô aqui lhe escrevendo e usando 3 hífens na mesma palavra. Sendo que me prometi que não cometeria nenhum erro de português porque sigo uma mulher insuportável no Instagram que só fala de erro de português. Percebe o efeito imediato do auto-mau-olhado? Faço o que não quero o tempo todo. Busco uma cura em no máximo 1 mês, que é o tempo que tenho pra me dedicar a isso”. Nessa hora eu dei Google pra saber se dava pra ter 3 hífens na mesma palavra numa distração 100% pisciana de quem esquece da existência do bem-me-quer e do mal-me-quer. Dá sim. E auto-mau-olhado leva hífen mesmo. Tá certo.

Ele continuava. “Olha, se quiser publicar minha pergunta, publique. Mas pelo menos aproveite pra responder. E que fique registrado que já peguei ´há´ sem ´H´ nos seus textos mais de uma vez, assim como falta de acento grave, só pra gente ficar na mesma página”. Ui. Não é que eu esteja 100% em dia com o Aurélio Buarque de Holanda, muito menos com o novo acordo ortográfico, mas juro que passo corretor. E depois pro há de haver, canto a música do Gil quando fico na dúvida: “Não há o que perdoar, por isso mesmo é que há de haver mais compaixão. Quem poderá fazer aquele amor morrer se o amor é como um grão”. De qualquer forma, perdão, minha gente.

“Enfim, cura ou não cura? Um mês no máximo. Se curar, quero marcar uma entrevista. Se não, favor desconsiderar à mensagem”. Não é por nada não, mas esse acento aí tá sobrando. E digo isso numa concordância absoluta com o remetente do e-mail porque também acho aquela moça do Instagram insuportável. Respondo aqui: vê, análise não é unha de gel. Não tem prazo de duração pré-determinado. Agora, essa coisa do auto-mau-olhado me interessou perdidamente e acho que ela está mais ligada ao bem-me-quer, mal-me-quer do que pensam os hífens todos. Eu digo que venha. Mas digo também que análise é feito um grão, igualzinho na música. Às vezes um tanto de coisa tem que morrer pra germinar. Venha que cabem os excessos, as faltas e os tropeços que aparecerem nessa “caminhadura”. Amei o e-mail e sigo pensando sobre ele. Boa semana, queridos.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

19 de maio de 2025

Pra lá da última esquina

“Se fosse pra ser bem precisa, fiel mesmo aos mapas todos, quando você tiver chegado na última esquina, não vai ter percorrido nem metade do caminho. É desse tanto de ‘lonjura’ que a gente tá conversando. Eu não sou boa disso, não, Rô”. Essa era minha analisanda de sexta-feira (a última do dia) tentando me explicar quão distante se considera de encontrar uma pessoa “com quem valha a pena (meia pena que seja) se relacionar”. Ela tem as melhores metáforas e construções de frases.

Não é a única que me diz dessa sensação, é quem diz de forma mais literária, isso sim. Mas, nossa, como tenho escutado coisas parecidas. Pra além da análise dela – e da tua, caso essa seja uma fala que poderia ter saído também daí-, a primeira pergunta que me vem à mente é: de que ´pena´ a gente tá falando?

Vê, se relacionar envolve investimento e alguns investimentos podem ser mesmo penosos. Dá uma olhada nessa definição de penoso, a primeira que me apareceu aqui na pesquisa. Que causa dor e sofrimento; doloroso. Que não é agradável; que provoca desconforto; desagradável. Que demanda muito trabalho, muito esforço; difícil. “Que causa dor e sofrimento; doloroso” me pega um pouquinho. Um relacionamento que cause dor e sofrimento, a depender da dor e do sofrimento, já é caso de entender mesmo se vale. Agora “que não é agradável; que provoca desconforto. Que demanda muito trabalho, muito esforço; difícil” é meio que o basicão de existir, não? Um bebê quando nasce e tem a experiência de respirar fora da barriga da mãe pela primeira vez, se pudesse ser entrevistado na sequência (e soubesse falar, dizer de si e tudo aquilo) dificilmente classificaria a cena como agradável, certo? Viver dá trabalho, demanda esforço, às vezes é meio difícil, mas é massa também. Vale, claro que vale. Tô doida?

A segunda pergunta é: e tu tá fazendo o que além de se relacionar? Estamos em relação a alguém (na relação com alguém) desde aquela hora do parto. Relacionar-se é beabá da condição humana. Eu sei que não é esse o tipo de relacionamento que foi mencionado na minha sessão da sexta. Mas às vezes penso que olhamos para a relação erótico afetiva como se ela estivesse apartada das outras todas.

Minha analisanda “vai ficando” (conhecendo um monte de gente) no objetivo, segundo ela, de “fazer supletivo de como lidar com o outro”. Diz que nasceu sem essa habilidade e não tá conseguindo aprender por nada, ainda que tente. De onde vejo, penso que descreve a dificuldade de buscar alguém “que valha” como se fosse dela a incapacidade da busca ou até mesmo da condução de uma relação. Mas faz isso enquanto se relaciona e busca. Quase como aquela bailarina girando na ponta do pé enquanto jura que balé não é pra ela. Tá aí um lugar onde o gerúndio fica bem na frase. A gente pena penando e se relaciona se relacionando. Sei lá, mil coisas. Boa semana, queridos.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

12 de maio de 2025

Gê de gente

Tia Gê era professora de ginástica em Garanhuns. Isso em 80 e poucos quando eu era menina pequena ainda. Não lembro da carinha dela, mas mainha foi uma de suas alunas. Posso estar inventando, mas na minha cabeça, ela dava aula na casa das pessoas. Não no esquema personal, professor e aluno. No esquema amigas se juntam cada vez em uma casa diferente, preparam lanchinho, ligam o som na sala, conversam antes, conversam depois. Sempre que me refiro às amigas de Garanhuns de minha mãe é de 8 pra mais, certo? Galera mesmo.

Escutei agora um podcast sobre a epidemia de solidão atual e lembrei do esquema de tia Gê. Encontro a Mari, minha “professora de ginástica”, duas vezes por semana na academia. A gente passa a hora que estamos juntas conversando. Ela é muito boa no que faz, concentradíssima. Então essa conversa só se dá nos intervalos (cronometrados) entre as séries. Quando não é intervalo ela está controlando meus movimentos e minha respiração enquanto conta as repetições.

Se a gente pensar na eficiência do meu treino de hoje em relação ao de mainha em 80 e poucos, dúvida zero. O meu é treino de verdade, o de mainha era quase que uma social. Mas minha gente, devia ser uma delícia, não é? Eu encontro minhas amigas uma vez por mês. As muito próximas, do coração, da frequência disciplinada mesmo, são 4 separadas em duas turmas diferentes. Uma vez por mês. Mainha encontrava só essa turma 2 vezes por semana. Fora as outras turmas, fora os cafezinhos que combinava no fim da tarde, os jantares que fazia em casa, as viagens de amigos.

Ah, mas eu trabalho muito. Ué, minha mãe trabalhava muito também, a vida não era molezinha. Mas sobrava mais tempo. Segundo o podcast (era O Café da manhã, da Folha de São Paulo), parte do que nos atrapalha é o excesso de disponibilidade de contato (Whatsapp, redes sociais e as modernidades todas) versus a escassez de disponibilidade real. Estamos a um like de todo mundo, mas like não é conversa, a uma mensagem de feliz dia das mães (copiada e colada), mas a um mês de encontrar e perguntar como foi o dia de verdade. Me impressionou um pouquinho isso. Esse amassamento da vida de agora.E vocês, como estão os laços por aí? Boa semana queridos, se puderem, encontrem um espacinho pra ver um amigo essa semana. A gente se faz nas relações, né? Eu vou tentar.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

5 de maio de 2025

Na primeira manhã que te perdi

Perdi o sono essa noite e fiz o que não devia. Fiz “o que não devias” porque foi mais de uma coisa (e me deixem com meu plural torto, acordei atravessadíssima e a gramática não está aberta a discussão).

  1. Peguei o telefone na mesinha ao lado da cama. Não entrei em nenhuma rede social. Veja que disciplinada. Mas abri um agregador de notícias. A primeira era: “Planeje uma viagem à Europa sem sair de Minas Gerais para essa cidade”. Minha gente, calma. Primeiro, para planejar uma viagem à Europa, não é preciso sair de lugar nenhum. Você planeja da sua casa mesmo, aí depois você vai. Se sua casa for em Minas, sorte a sua, porque amanhã no café da manhã, haverá pão de queijo dos de verdade. Se não for, problema nenhum. Depois, para essa cidade qual? Em Minas ou na Europa. Não sei, mas…
  2. Levantei atrás de pão de queijo. Tinha um pacotinho na gaveta do freezer. Me senti abençoada pela fada da fome da meia noite embora fossem somente 3 – do coquetel, aquele micro, pão de queijo da Barbie de tão pequeno. O adiantar da hora decidiu pela Airfryer e aí lembrei que a tomada da Airfryer enganchou na tomada da parede e coloquei os 3 coitados no microondas. Não deu pra comer, mas…
  3. Lembrei que tinha escrito para um eletricista na semana passada. A Airfryer é importante pra mim. Não lembrava do nome do eletricista pra checar no Whatsapp se ele já tinha respondido e escrevi eletricista na busca. Não havia eletricista. Escrevi conserto, também não. Encanador, vai que me distraí, nada. Passaram 1 hore e 17 minutos até que encontrei o sr. Leandro para quem digitei a mensagem e não enviei. Enviei. Leandro, o outro, meu amigo de faculdade tinha me mandado um link de música, em 2018. Contava da separação recente. Já recasou e teve 2 filhos. Cliquei, amo essa música, mas…
  4. Era na primeira manhã do Alceu Valença. Começa assim: Na primeira manhã que te perdi, acordei mais cansado que sozinho. Lembrei que terça, perdemos um gato. Procurei até quase chorar pensando em como contaria para as meninas do desaparecimento. Achei 20 minutos depois, mas…
  5. Não vi os gatos na cozinha, voltei a procurar. Revirei a casa. A cozinha, a área de serviço, a sala, o banheiro, cada armário, cada cantinho, a escada de incêndio, 8 andares pra baixo e 3 pra cima, a garagem. Bati na guarita do porteiro pra pedir as imagens da câmera de segurança. Ele dormia (igual a sr. Leandro) e ficou chateado (talvez um pouco menos que sr. Leandro) com o contato na madrugada. Voltei pro quarto perdedora e sem fôlego. Ambos dormiam cobertos na minha cama (esfriou essa semana). Deitei pertinho deles. O alívio me deu sono, fechei o olho, mas…
  6. Eram 6h da manhã, hora de acordar. Bom dia, mas só se for pra vocês. Sim, alguém me indica um eletricista?

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

28 de abril de 2025

O enigma de um dia

Abandonei meu mestrado meses depois da qualificação. Se a vida acadêmica fosse vida religiosa,
seria considerado um pecado. A qualificação é uma pré-apresentação do projeto. É como se a
instituição assinasse embaixo pra você fazer as correções de rota necessárias e entregar de uma vez
o trabalho pronto. Tava quase pronto, mas desisti bem ali. Isso faz uns 20 anos. Aí que passei a fazer
um milhão de pós-graduações pra compensar o não mestrado.

Fui feliz com quase todas. Só que tem sempre uma melhor. Era uma pós em teoria de arte no MAC
da USP. No MAC mesmo, lá dentro do museu, quando a sede ainda ficava na cidade universitária. Eu
entrava naquele lugar como quem entra em uma igreja, num respeito, numa devoção. Eram duas
aulas na semana, quase sempre no auditório. Mas às vezes a gente ia na sala de exposição estudar
uma obra ou um artista específico. Nesses dias eu sentia uma vontade tão grande de que o mundo
inteiro estivesse ali. O mundo inteiro. O povo que já morreu e o povo que ainda vai nascer. Todo
mundo tinha que ter o direito de estar no museu fechado para visitantes olhando pra cada
milímetro de um pouco mais de 1 metro quadrado de tela que são ao mesmo tempo um pouco mais
de 1 metro quadrado de tela e o mundo inteiro. Eu saía dessas aulas com um pulmão de 20 metros
quadrados. Dava pra respirar uns 20000 litros de ar por minuto com meu pulmão novo.

A sede do MAC mudou e toda vez que encontro um dos quadros que estudamos na sede nova, meu
pulmão cresce mais um pouquinho. Ontem fui conhecer o anexo do MASP. Há qualquer coisa no
ambiente de um museu que nos altera mesmo o fôlego. Vão lá, minha gente (nas terças e nas sextas
a partir das 18h o ingresso é gratuito). Entrei na sala do segundo andar onde está a vídeo-instalação
de Isaac Julien e fiquei assim meio boba. Eram 9 telas dispostas umas de frente para as outras. Nas
telas, espaços projetados por Lina Bo Bardi, textos dela lidos por Fernanda Montenegro e Fernanda

Torres e o Balé Folclórico da Bahia em coreografia de Zebrinha. Cheguei na metade da projeção sem
entender muito o que estava acontecendo, quase desatenta, até que uma bailarina (meio orixá, meio
bailarina) começa a girar a saia vermelha diante da escada do MAM da Bahia. Eu lembro do
primeiro dia que fui ao MAM da Bahia com a mesma nitidez do dia que desisti do mestrado. Tudo ao
redor meio sem foco – Por que fui? Com quem eu estava? Fazia calor ou frio? O que estava exposto?
No museu e na desistência – mas uma imagem ficou inteira preservada dentro de mim: a da escada.
Nunca esqueci da escada do MAM da Bahia. Pesquisando sobre a vídeo instalação, vi que ela se
baseia na seguinte citação de Lina Bo Bardi. “O tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado
no qual, a qualquer momento, fins podem ser escolhidos e soluções inventadas, sem começo nem
fim”. Igualzinho à escada. Acordei pensando no giro, no sobe e desce do tempo e no meu desejo de
fôlego pra mim, pra tu e pra todo mundo. O povo que morreu e o povo que ainda vai nascer. Boa
semana, queridos.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

21 de abril de 2025

Qual é o seu perfil de investidor?

O Bitcoin está em alta. Tá vendo, Rô? Eu te disse que valia a pena investir, me diz (e me disse mesmo) meu analisando das 8h da manhã de ontem. Pedi que ele explicasse um pouquinho melhor como funciona (pra ele) o Bitcoin. É o que fazem os analistas na maior parte do dia. Perguntam. Dos temas que já sabem de trás pra frente e dos outros sobre os quais entendem bulhufas. A gente pergunta pra abrir terreno. Na resposta, o analisando desmonta o discurso e diz de si, do que sente, do que pensa.

De Bitcoin entendo bulhufas, embora já tenha ouvido essa explicação 500 vezes – parece que é meio moda entre o povo que frequenta meu consultório fazer esse tipo de investimento. A fala quase sempre começa com o básico do “é uma criptomoeda” e termina cada um pra um lado porque o interesse da escuta tem muito mais a ver com o investimento psíquico (libidinal) do que com o financeiro.

Nunca investi em criptomoeda. Mas amo criptograma, aqueles da Coquetel, sabe? Funciona um pouquinho como criptomoeda. Você não tem grandes certezas, mas há pistas. É preciso apostar. Na criptomoeda não dá pra cravar se vai subir ou descer, nem quando, nem quanto; se vale a pena tirar agora ou colocar mais dinheiro pra tirar depois. No criptograma, numa língua cheia de sinônimos feito a nossa, às vezes uma escolha errada muda o rumo da página inteira e olha que a página é de papel jornal e apagar sem rasgar é quase tão arriscado quanto o bitcoin.

Passei o dia pensando nisso, nos riscos, nas demandas e nos ganhos de um investimento. Desde os mais administráveis como uma escolha profissional, a compra de um imóvel, aos mais complexos como os que dizem respeito aos relacionamentos, ou a decisão de ter um filho, os quandos, os com quem, e os comos.

Meu analisando das 8h veio ao consultório para fazer terapia de casal. Estavam diante de alguns desses dilemas complexos. Tentaram, mas acabaram se separando. Ele voltou anos depois para começar uma análise. Anda escrevendo novas páginas, novas combinações de letras. Apaga devagarzinho quando é preciso, com cuidado pra não rasgar, mas sabendo que restarão as marcas. Tem dias que me conta da ex-companheira. Está ótima, teve gêmeos em julho. Lhe quer bem. Também viu crescer a barriga da companheira atual (mais de uma vez, inclusive), tem se aprofundado nas próprias questões, feito as elaborações possíveis. Sei lá, às vezes também tenho vontade de lhe dizer “tás vendo, vale a pena investir”. Boa semana, queridos.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

14 de abril de 2025

É o puro creme do milho

Ontem eu deitei umas 10h da noite. Tinha tirado um cochilo das 7h às 9h. Não recomendo. Acordei confusa, com sede, ainda mais cansada e se me perguntasse o meu nome, provavelmente eu demoraria pra responder.. Pensei que faria sentido uma meditação guiada pra entrar no sono grandão e, quem sabe, não acordar às 4h como tem acontecido quase todos os dias desde a chegada da viagem. 

Quando na viagem, fiquei impressionada com o silêncio. Havia silêncio disponível até no metrô. Faz-se urgente experimentar uma quantidade menor de decibeis em minha vida, pensei. Tenho tentado. Ocorre que moro em uma avenida com barulho de ônibus, de moto, de comemorações dos jogadores de beach tênis na quadra da frente (que oferece turmas desde às 5h da manhã, que tal?), de reformas no próprio prédio e de  um prédio inteiro sendo construído no terreno vizinho de muro. Se for mês de carnaval tem trio elétrico na rua de trás e, em qualquer mês do ano, inclusive no do carnaval – quase esqueci de dizer – tem o carro da pamonha, o do chocolate, o do morango e o do ovo. Todo dia. Mais de uma vez por dia.

Aí eu na cama às 10h da noite ouvindo a meditação guiada. O moço falava tão arrastado, tão arrastado, que eu botei no 1,5x – pra vocês posso contar. Eu lá, dando o melhor de mim pra pensar no azul-claro brilhante que ocupava meu corpo na inspiração e no laranja-amarelado que ocupava o mundo na expiração, passa uma moto com escapamento a milhão. Cai azul, laranja e amarelo pra tudo que é canto. Demorou uns 3 parágrafos do moço pra eu reorganizar. E assim foi até ele mandar um namastê. 

Respondi concorrendo com o barulho de um caminhão desbalanceado e peguei no sono. Tive o melhor sonho dos últimos tempos. Eu estava sentada no gramado que o moço descrevia depois do esquema do azul-claro em posição de lótus e com uma roupinha esvoaçante daquelas que o povo usava no céu da novela A Viagem. Éramos eu, a Christiane Torloni, o Antônio Fagundes. Todo mundo concentradinho, cabelos ao vento. Quem falava com a voz do professor era Guilherme Fontes, que não estava de preto. Ele lá mandando a gente inspirar profundo, e alongava o “un” profuuuuuuuundo. A gente, quase que hiperventilando, obedecia. Até que anunciava o momento dos mantras e repetia na velocidade 0,5x. Pamonha, pamonha, pamonha, pamonha de piracicaba, é o cural de pamonha, é o puro creme do miiiiiiiiilho. Fazia vrum, vrum, vrum, feito criança imitando motor de carro. A gente repetia. Depois, gritava ponto, ponto, poooonto e emendava um “eu falei faraóoo, êeeeeeeeee, faraó. Acordei às 4h de novo. Mas pelo menos, acordei rindo. Força, foco e fé pra gente, galera. Vou tentar deitar às 9h hoje. Depois, eu conto.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

10 de abril de 2025

As entranhas do porco

Meu namorado diz que quem volta igual de uma viagem não precisava nem ter viajado. É mesmo, né? Ou a gente se deixa transformar (seja a viagem da natureza que for), ou a vida perde quase toda a graça. Mesmo assim confesso ter me sentido um pouquinho pressionada hoje cedo, no primeiro dia do pós-férias. Será que fui competente na tarefa de mudar ou voltei igual que nem?

As semanas de Japão foram impressionantes, disso não tenho dúvida. Há um jeito de estar no mundo meio outro do outro lado do mundo. Vocês assistiram Dias Perfeitos? Sabe aquele “todo dia ele faz tudo sempre igual” que dá uma admiração e um espanto do mesmo tanto? Senti isso o tempo todo. Fora que viajei com minha irmã e minha mãe. Foram 15 dias dormindo e acordando com elas. Não fazíamos isso desde 1991, o último ano em que moramos as 3 juntas. Quem volta igual de uma imersão familiar não precisava nem ter mergulhado, né? 

Chegamos na semana exata em que as cerejeiras floresceram em Tóquio, as flores duram 7 dias. Todo dia de manhã, minha irmã acordava mais cedo, meditava, fazia sua série de Yoga, tomava chá e caldinho quente. Todo dia minha mãe nos lembrava de nossa sorte de estarmos juntas, elogiava as lichias descascadas, se comovia com a beleza das flores. Sabe aquele “todo dia ela faz tudo sempre igual” que dá uma admiração e um espanto do mesmo tanto? Senti isso o tempo todo. 

Numa visita a um jardim, escutamos a explicação de que parte do simbólico da terra “penteada” – aquela que a gente reproduz com ferramentas pequenininhas nos jardins em miniatura – era o estar preparado, acordar de manhã e preparar-se. Aquilo entrou tão fundo em mim. Uma moça do meu lado não conteve a angústia de urgência de utilidade tão ocidental nossa: preparado pra que?, perguntou. Ué, pra ver as flores, só duram 7 dias. Assim como quem acorda mais cedo e estica o tapetinho de yoga no quarto de hotel, assim como quem não cansa de elogiar a lichia descascada, assim como quem dobra o futon sabendo que vai desdobrar no fim do dia. 

Hoje eu cheguei mais cedo no consultório pra arrumar a sala pro primeiro analisando da segunda-feira. Em cima de minha mesa o caderno estava aberto com notas que tomei na sexta pré-férias. Eram 6 itens: 1. As entranhas do porco; 2. Dois dentes do Carlos Augusto; 3. Não esquecer, 15h30; 4. Olhar atravessado; 5. Só se for verde; 6. Página 27 e 33. Foi eu que escrevi, é minha caligrafia, mas foi outra eu. Não faço a menor ideia do que Roberta de lá tinha que fazer às 15h30, deve ter esquecido, que olhar foi esse, de que livro eram as páginas 27 e 33, o que havia de maduro ou de verde, quem é Carlos Augusto ou por que me preocupavam as entranhas do porco. Talvez eu não tenha voltado igual. Muita terra ainda pra pentear nesse jardinzinho, minha gente. Feliz por estar de volta com vocês e ainda pensando na profundidade de mergulho. Boa semana, queridos.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/


Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

17 de março de 2025

Os mares do Japão

A mãe de criança pequena – fim de semana sim outro não – quando menos espera, está sentada em uma mesa de plástico no térreo de um prédio onde nunca esteve antes, ouvindo caixa de som estourada, grito de criança e de monitor (que costuma ser mais insistente e estridente do que o da criança), segurando um balão que vai pipocar, embora numa tentativa dedicada para que não estoure, com a sola de sapato preguenta de brigadeiro e talvez a outra mão também preguenta por segurar um brigadeiro reservado que pode virar o próximo brigadeiro pisado, conversando com uma outra mãe na mesma circunstância nunca antes vista, e com quem provavelmente não se tem nada em comum além do aniversariante da vez, por assim, umas duas ou três horas de um sábado à tarde ou até que alguém resolva cantar parabéns. Se a mãe tiver mais de um filho, talvez a cena se dê todos os fins de semana.

Pois que uma vez eu estava neste tipo de sabado e minha interlocutora desconhecida me confessou uma angústia. O filho dela, que devia ter uns 6 anos, como tinha a minha mais velha à época, lhe dizia todos os dias na hora de dormir que tinha vindo “dos mares do Japão”. Descrevia em detalhes a travessia feita a barco e como eram enormes as ondas, o que vestiam, o que estavam com ele, como era a moça que o carregou nos braços até ela, o porto, os temporais, as músicas que ouviram no caminho. “Eu sonho com isso, mas sei que não é sonho, mãe”, ele dizia. Aquilo me impressionou horrores. Nunca esqueci.

De forma diferente, a minha mãe também tem um certo fascínio pelo Japão. Sonhou por muito tempo com uma viagem. Mais de uma vez, estudou possibilidades de roteiros, organizou a buscou os melhores voos, os hoteis que fariam sentido, as cidades que gostaria de visitar, os parques, os templos. Resolveu ir em 2019, partiria no primeiro semestre de 2020. Não sabia que na data do embarque viveríamos o auge da COVID 19. Não foi. De lá pra cá, o Japão dela, parecia um pouco com o do filho da moça do aniversário. Um Japão pouco palpável, talvez até, um Japão de uma outra vida.

Quando penso nas festinhas que descrevi há pouco também tenho essa sensação de outra vida. Minhas filhas são outras, as festas são outras, as travessias e as ondas são outras. Ser mãe de filhas adultas é quase que uma outra categoria de maternidade. Assim como ser filha adulta é também quase uma outra relação, embora seja tão a mesma. No próximo sábado, embarcaremos minha mãe, minha irmã e eu, para Tóquio. O objetivo da viagem é vê-la feliz no próprio sonho. Levo comigo o menino e o sonho dele e a moça que o carregou no colo em meio às ondas gigantes. Tô numa sensação danada de que estarei bem acompanhada. Na volta, conto como foi. Beijo grande, queridos. Até lá.

@robertadalbuquerque
[email protected]
https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque
https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/

Artigos Relacionados