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VARIEDADES

Rock in Rio: Como uma enquete na Fluminense FM ajudou a trazer astros internacionais à primeira edição, em 1985O

11 de setembro, 2024 / Por: Agência O Globo

Jornalista e radialista Luiz Antonio Mello lembra reunião com Roberto Medina, criador do festival, sobre pedidos do público por AC/DC, Queen e Iron Maiden

Rock in Rio: Como uma enquete na Fluminense FM ajudou a trazer astros internacionais à primeira edição, em 1985O
Freddie Mercury regeu a plateia com o Queen — Foto: Jorge Marinho / 18/01/1985

Foi no inverno de 1984. Roberto Medina ligou para a Rádio Fluminense FM e foi curto, mas não grosso. “Preciso me reunir com vocês.” A rádio já estava entre as cinco mais ouvidas do Estado do Rio, caminhando para terceiro lugar, e imaginei que ele quisesse fazer alguma campanha ou promoção. O cara que pôs Frank Sinatra para cantar no Maracanã, dono de uma das maiores agências de propaganda do país, tinha mais o que fazer. Não iria agendar papo sobre a infância de Arariboia.

Fomos eu, Hilário Alencar (produtor) e Álvaro Luiz Fernandes (gerente de promoções). A Artplan funcionava na Fonte da Saudade, na Zona Sul do Rio, onde fomos recebidos por Roberto, seu irmão e, na época, deputado Rubem Medina, o lendário Oscar Ornstein, o “Mister Copacabana Palace”, o produtor Luiz Oscar Niemeyer e Evandro Barreto.

— Vou fazer um festival de rock maior do que Woodstock.

Esta foi a “manchete” da reunião, disparada por Roberto Medina em letras garrafais. Se não fosse o homem que pôs Sinatra no Maraca, dava para pensar que era conversa de quem comeu cogumelos mágicos nos anos 1970.

Fomos conduzidos a um anfiteatro onde, em grandes painéis, superbem produzidos, estava o festival com o seu palco gigantesco, luzes, imagens impressionantes. Luz de Peter Gasper, cenário de Mário Monteiro, produção do Luiz Oscar Niemeyer, Oscar Ornstein, enfim, não dava para duvidar.

De novo rápido, curto, Medina disparou:

— Nossas pesquisas apontam a rádio Fluminense FM como a nº 1 entre os consumidores de rock no estado. Preciso que vocês façam uma enquete junto aos ouvintes para saber quem são os artistas internacionais que eles querem ver. Mas não podem saber do Rock in Rio, que por enquanto está em sigilo. Vocês topam?

Topamos. Era noite, fomos direto para a rádio e, mais empolgados do que ETs de volta a Varginha, pusemos a pergunta no ar: “Se acontecesse no Rio um festival do tamanho de Woodstock, quais os nomes internacionais você gostaria que estivessem presentes?”

Não dormi aquela noite. “Dez dias de festival, 150 mil pessoas por dia, total de um milhão e meio, os melhores do mundo tocando no Rio parado em festa, a Fluminense FM líder absoluta em audiência, consagração total”, eu pensava.

Na rádio, o telefone não parava. Dezenas, centenas ligando e dando seus palpites. Depois de uns 15, 20 dias, tínhamos os números e voltamos a falar com Medina. Na conversa, ele e Oscar Ornstein — que, como se sabe, era um lorde, mas naquele dia estava injuriado, chutando coqueiros elegantemente, à maneira dele. Sem necessidade, desculpou-se comigo.

— Perdão, mas o que Bob Dylan fez comigo não se faz — disse Ornstein. — O empresário marcou comigo em Nova York. Fui. Cheguei lá e tinha um recado de que Dylan tinha ido para Paris. Peguei outro avião e, quando cheguei ao hotel em Paris, mais um recado. Dylan tinha viajado para o interior. Peguei outro avião e, quando cheguei, ele não quis me receber de jeito nenhum. Liguei para o Roberto que, também indignado, disse: “Deixa pra lá, volte para o Rio.”

Quando entreguei os papéis com o resultado da enquete, Roberto Medina parecia o Rei Arthur pegando a Excalibur. Estava lá, em primeiro lugar disparado, uma megabanda que tinha acabado quatro anos antes, o Led Zeppelin. Em seguida, Dire Straits, AC/DC, Queen, The Who, U2, Def Leppard, Iron Maiden.

A preciosa lista provocou um mutismo, quebrado por uma única frase:

— Vamos trazer todos — determinou Medina.

Roberto Medina soltou a sua pequena e eficiente tropa para contratar os artistas. Primeiro, as negativas. Dire Straits estava gravando o álbum que foi o seu maior sucesso, “Brothers in arms”. The Who estava parado, U2 sem agenda. Mas no mercado corria uma lenda curiosa: “Medina só cai pra cima.”

Tanto que, mesmo com as negativas, ele insistiu. Orientado por seus produtores, quis trazer Jimmy Page, Robert Plant e John Paul Jones, remanescentes do Led Zeppelin. Page balançou, queria fazer, mas Plant bateu pé. Anos depois, os dois subiram no palco do Hollywood Rock de Luiz Oscar Niemeyer, na Apoteose.

Nome sujo na praça

Os outros nomes aceitaram, desde que fossem pagos antecipados, à vista. O Brasil estava com a imagem mais imunda do que a Baía de Guanabara, com registros de roubo de equipamentos de bandas internacionais, calotes em cachês. Se existisse um Serasa no show business, a nossa Pindorama estaria no topo da lista.

Com a nossa enquete na mão, Medina & equipe contrataram a primeira leva internacional, arrasadora, que destacou Queen, Yes, AC/DC, Rod Stewart, The Go-Go’s, Nina Hagen e muitos outros.

Quando o festival foi, enfim, anunciado, foi como se o Vesúvio (do bem) ficasse na Pedra Bonita e sua erupção de decibéis fosse mais monumental do que a do ano de 79 d.C. sobre Pompeia. O Rio entrou em êxtase. Só se falava em Rock in Rio, de Paraty a Campos dos Goytacazes. E as sedes locais das gravadoras multinacionais, claro, entraram em estado de justa euforia: afinal, ter um artista no festival garantiria altas vendagens de discos numa fase de economia recessiva.

Uma romaria de executivos procurava Roberto Medina apresentando artistas, mas ele os encaminhava para os produtores, não tinha muito envolvimento com a área artística. Nos bastidores, apagou incontáveis incêndios de grandes proporções. Teve que enfrentar até uma suposta profecia de Nostradamus que previa que “um grande encontro de jovens na América do Sul perto do final do século terminaria com uma tragédia que causaria a morte de milhares de pessoas”. Claro, todo mundo pensou no Rock in Rio.

Ou seja, além de contratações complicadas, busca de grana, som, luz, logística, burocracia, má vontade do governo, o empresário teve que enfrentar os espíritos de porco que, ao que parece, se apossaram do Brasil desde que a nau de D. João VI embicou na Baía de Guanabara em 1808.

Troca em cima da hora

Dias antes do festival, numa tarde de sábado, ele me ligou. Qualquer um estaria, no mínimo, à beira de um ataque de nervos diante de tantos reveses, mas o calejado Medina parecia um monge tibetano ao telefone:

— Luiz Antonio, tudo bem? O Def Leppard não virá mais. O baterista sofreu um terrível acidente de carro e perdeu o braço esquerdo. Você tem algum nome que possa substituir?

De fato, Rick Allen ficou em estado grave, vindo a se recuperar mais tarde. E, mesmo com um braço só, continuou baterista da banda.

Com a velocidade supersônica de uma maquininha de aumentar preços nos supermercados, que surfavam, em orgasmo, com a inflação de 216% ao ano, meu pensamento, ato reflexo de fã, ofereceu o Motorhead. Medina pediu mais opções.

Parti para a rajada: David Bowie, Deep Purple, Iggy Pop, Hawkwind, Sisters of Mercy, Rory Gallagher, Thin Lizzy. Olhando para a parede do meu escritório, vi um pôster do Whitesnake e sugeri. O festival escolheu a “cobra branca” de David Coverdale, sem duplo sentido.

Em restaurantes, bares, igrejas, cinemas, só se falava no evento. Entre os mais empolgados (pensando positivo, isolando na madeira) estavam Carlos Celles, Roberto Menescal e Marcelo Castello Branco (da gravadora Polygram), André Midani (da Warner), Jorge Davidson (da EMI Odeon), enfim, todo o planeta da indústria do disco. Almoçava todos os dias com um deles, e as ideias fervilhavam.

O que mais assustava não era Nostradamus, mas o tráfego caótico: “o trânsito do Rio vai da rum nó”, diziam os pessimistas. Chegou-se a pensar em mandar artistas de helicóptero ou chegar uma semana antes na Barra e hospedar o pessoal.

No coquetel de boas-vindas aos artistas, uma noite na pérgola do Copacabana Palace, deu para ver que o Rock in Rio se concretizou. Rita Lee conversava animadamente com Rod Stewart, Chris Squire, baixista do Yes, elegantemente entornava baldes industriais de caipirinha. Estava toda a fauna roqueira perambulando por ali. Foi quando vi lá fora um cara cabisbaixo, andando em volta da piscina. Era David Coverdale, cantor do Whitesnake.

Com uma intérprete, abordei-o:

— Animado para o festival?

Ele respondeu:

— Sim, mas ansioso porque acho que estou com um princípio de laringite.

A multidão não parecia assustá-lo. Afinal, com o Deep Purple, encarou centenas de milhares no California Jam, dez anos antes.

— O convite surpreendeu, foi em cima da hora — ele comentou.

Fechei o papo filosofescamente:

— Pois é, David, o destino tem dessas coisas.


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