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Sei lá

2 de agosto, 2023

Voltei para a oficina de poesia semana passada. Sempre um evento. Eu devia fazer essa oficina permanentemente. É como se as horas de aula me […]

Sei lá

Voltei para a oficina de poesia semana passada. Sempre um evento. Eu devia fazer essa oficina permanentemente. É como se as horas de aula me dessem um fôlego outro. Não, nem é fôlego. É como se as horas de aula me abrissem o ouvido, me dessem um ouvido outro. Parece que escuto mais e melhor, um olho outro, vejo mais e melhor. Sei lá. É um desentupir da vida, sabe assim? Teve isso e teve aquela da Wislawa que na hora da aula até me pegou, mas à medida que os dias foram passando, a danada foi tomando o corpo, assim fisicamente mesmo. Bateu o domingo e eu era só verso. O texto publicado em 1972 empurrando carrinho no supermercado, esfregando a mancha da toalha da mesa na área de serviço, escovando os gatos comigo. Queria que ela soubesse. Mas já está morta há mais de 10 anos.

Na quarta ainda, Wislawa pela metade do corpo, 9h30 da noite, eu suando na hot yoga. O dia inteiro ouvindo Nothing Compares 2 U, na timeline do instagram, uma pontinha de raiva pelas homenagens póstumas, que são sempre póstumas e eu queria que se ouvisse, e que se lesse, e que se homenageasse o povo antes do povo morrer, embora eu também não pusesse Nothing Compares 2 U pra tocar há anos. Antes do shavasana final, cabeça vazia, uma vitória a cabeça vazia, a professora diz: essa aula foi em memória de Sinéad O’Connor. Aí eu achei bonito, aí eu chorei. Memória é tão maior que homenagem, não é? Será que deu pra sentir? Que de algum lugar tão longe da elegância careca, todo mundo descabelado e grudento, todo mundo desafinado nos suspiros de alívio lembrava-se, deu pra sentir? Queria que ela soubesse e shava é cadáver, o google tá aqui dizendo. Wislawa, Sinéad e eu na posição do cadáver, mas vivas. Suficientemente vivas.

Na sexta, nós três abrindo a porta do consultório juntas. A primeira analisanda do dia era online, mas gosto de atender no consultório mesmo quando eles estão em casa. Ela está em análise há quase três anos. Nas primeiras sessões, nem olhava pra câmera. Uma dificuldade danada de estar com o outro. Foi andando. Pedia licença pra beber o café. Foi andando. Dizia de si enquanto molhava as plantas. Foi andando. Na sexta, pois, ela contando de um sonho, imersa no fluxo do sonho, levanta, abre uma porta, entra, senta, sai o barulho de água batendo na água, ela vira pro lado, barulho de papel, vira pra trás, barulho de descarga, eu ali na câmera, no rosto, volta, senta no sofá e segue o sonho. Pra mim foi como presenciar a vida do outro desentupindo, sabe assim? O domesticado da vida desentupindo. Todos os líquidos, inclusive o suor e a lágrima podendo deixar o corpo, Sinéad chorando na MTV.  Essa semana valeu muito a pena estar aqui. Sempre vale, mas essa semana… Sei lá.

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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