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Sigamos

7 de maio, 2024 / Por: autora

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu – Verdades inconfessáveis sobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

Sigamos

Escrevi ontem para um conhecido meu que mora no litoral Paraná. Nos falamos raramente, mas lembrei dele quando vi o vídeo do mercado central de Porto Alegre. Dei meu bom dia, disse da lembrança e perguntei se estava bem. Estou advertida da diferença entre o Rio Grande do Sul e o Paraná, óbvio. O estar bem dizia respeito ao sentir, não ao subir os móveis pra tentar salvar alguma coisa da chuva. Explico: quando Maceió ameaça afundar, sentimos todos ou, pelo menos, deveríamos sentir. Mas é provável que nordestinos como eu nos preocupemos ainda mais, não? Maceió está há duas horas de Recife. Aposto que conheço mais gente em Maceió do que meu interlocutor do Paraná. Muito esquisito esse raciocínio?

Bem, talvez seja. Ainda assim, tive vontade de mandar um oi, pedir notícias. Recebi de resposta uma risada longa, 3 ou 4 “RSs” enfileirados, um “aqui fez sol e deu praia, não estava nem sabendo do que aconteceu, fui ver porque você chamou”. Aquilo me impressionou tanto. Primeiro a risada, e o fato de ela ser representada pela sigla do estado atingido, depois a menção à praia e, por fim, o me dar conta de que há alguém que viveu os últimos dias no Brasil (ou até fora dele) que não tenha tido notícias do desastre.

Lembrei de Freud e Ferenczi. Dito de maneira muito simples, pra Freud, o desmentido é mecanismo de negação da perversão. Percebo a falta (a castração) mas continuo vivendo como se ela não existisse. Recuso, renego, desautorizo a sua existência. Pra Ferenczi, o desmentido instala o trauma. Se por exemplo alguém sofre uma violência, procura um outro alguém para dizer do que aconteceu (e esse alguém não raro é quem cometeu a violência) e recebe de volta um “não foi nada”, a não validação pode ser percebida como um descrédito do próprio sujeito e não do evento que o sujeito relata. No limite, passa-se a duvidar de si. É uma re-violência.

Veja, aqui não vai uma campanha para que em dia de sol todo e qualquer cidadão brasileiro se recuse a ir a praia porque o Rio Grande do Sul está debaixo d ́água, ou pra que o show da Madonna seja apagado da memória dos que estiveram lá, pra que a gente não fale de nenhuma outra coisa que não seja a quantidade de mortos e desabrigados. Não. A vida se impõe e há de haver algum mecanismo em curso pra que ela se torne suportável apesar das notícias. Mas apartar-se delas como se o que ocorresse ao outro não nos dissesse respeito, como se essa fosse uma questão de bueiros entupidos, é no mínimo preocupante. Sentir, dar palavra, elaborar e seguir diferente. Não conheço nenhuma outra caminho, nem pra nossa relação com o trauma, nem pra nossa relação com a falta, a praia, o riso, a música, o outro. Sigamos. Mas sigamos tentando construir sentido. Boa semana, queridos.

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