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Tráfico humano em Mianmar: máfia mantém ao menos oito brasileiros em cativeiro

13 de fevereiro, 2025 | Por: Agência O Globo

Os paulistanos Luckas Viana dos Santos e Phelipe Ferreira conseguiram fugir do cativeiro em Mianmar no domingo

A coordenadora da ONG Exodus Road Brasil, Cintia Meirelles, que ajuda vítimas de tráfico humano no Sudeste Asiático, informou que ao menos outros oito brasileiros seguem capturados pela máfia chinesa. Os paulistanos Luckas Viana dos Santos e Phelipe Ferreira conseguiram fugir do cativeiro em Mianmar no domingo e aguardam o processo de repatriação na Tailândia.

Phelipe Ferreira e Luckas Viana se tornaram vítimas de rede de tráfico humano em Mianmar após falsas propostas de emprego

De acordo com Meirelles, a máfia chinesa obrigava os prisioneiros a aplicarem golpes, visando um lucro de US$ 100 mil por mês (cerca de R$ 576 mil). Caso não cumprissem, as vítimas eram submetidas a torturas físicas e psicológicas, que incluíam choques e trabalhos forçados de mais de 18h.

— Hoje apenas o Luckas e o Phelipe foram resgatados. Ao menos outros oito brasileiros seguem capturados, mas esse número pode ser maior — disse a coordenadora da ONG, completando ainda que os paulistanos estão abatidos e a salvo na Tailândia apenas com a roupa do corpo.

Fuga dos brasileiros

Luckas e Phelipe foram aprisionados no Triângulo de Ouro, região que faz tríplice fronteira com a Tailândia, Laos e Mianmar. Segundo Meirelles, ali a máfia chinesa atua capturando imigrantes de várias partes do mundo, que acabam sendo obrigados a aplicar diversos tipos de crimes cibernéticos. Os delitos vão desde fraudes de investimento em criptomoedas até os chamados “golpes do amor” em aplicativos de relacionamento.

— Eles movimentam essa grana e fazem com que esses imigrantes que estão lá não possam sair. As vítimas têm os seus passaportes retirados e a comunicação com o mundo externo totalmente vigiada ou proibida. Os prisioneiros, então, passam a ter metas financeiras para cumprir. Caso não cumpra, são torturados em salas escuras com choques, são obrigados a segurar um galão de 30 litros de água por horas. Muitos deles, na maioria das vezes, têm a alimentação restringida e também trabalham de 18 a 20 horas por dia — relata a coordenadora da ONG.

Os brasileiros combinaram de fugir de sábado para domingo, por volta de 2h30 da manhã, junto a um grupo de 85 pessoas de diferentes países que também haviam sido pegas pela máfia. A fuga aconteceu após um acordo com o Exército Budista Democrático Karen (DKBA, na sigla em inglês) — grupo armado ativo em Mianmar que integra a máfia chinesa.

De acordo com a coordenadora da ONG Exodus Road Brasil, o DKBA tinha uma lista com o nome de Luckas, Phelipe e outros 371 imigrantes reféns.

— A DKBA faz parte da máfia chinesa, que faz parte do governo de Mianmar. Colocando aqui uma imagem figurativa, seria o mesmo que ter o PCC numa sala, junto com as forças policiais e junto com o poder do Estado. Conseguimos firmar um acordo para liberar esses imigrantes, que ainda é um número irrisório visto que mapeamos que existem mais de 100 mil vítimas de várias nacionalidades do mundo escravizadas naquela região — explica Cintia Meirelles

Os dois brasileiros foram atraídos pelos mafiosos com supostas vagas de emprego na Tailândia e perderam contato com os familiares. Eles permaneceram no mesmo complexo de Mianmar em condições precárias.

Ajuda para repatriação

A expectativa é que os brasileiros sejam encaminhados para a Tailândia nesta quarta-feira (12). Os familiares de Luckas e Phelipe procuraram a Defensoria Pública da União para pedir ajuda para repatriar os brasileiros. Eles alegam que não têm condições de arcar com os custos de passagens e, por isso, pedem ajuda do Ministério das Relações Exteriores (MRE).

— O MRE deverá autorizar para que a embaixada local faça a aquisição das passagens de ambos de volta para o Brasil, além de também custear as hospedagem e alimentação — diz Meirelles.

Procurado, o Itamaraty informou que, por meio de suas Embaixadas em Yangon, no Myanmar, e em Bangkok, na Tailândia, “vinha solicitando os esforços das autoridades competentes, desde outubro do ano passado, para a liberação dos nacionais.”

“Em atendimento ao direito à privacidade e em observância ao disposto na Lei de Acesso à Informação e no decreto 7.724/2012, o Ministério das Relações Exteriores não fornece informações sobre casos individuais de assistência a cidadãos brasileiros”, concluiu o comunicado.

Proposta de emprego

Conforme noticiado pelo Globo em dezembro do ano passado, Phelipe foi atraído por uma vaga de emprego na Tailândia cerca de um mês após o paulistano Luckas Viana dos Santos, de 31 anos, cair na rede de tráfico humano.

— Ele já tinha trabalhado na Tailândia em um cassino no ano passado. De lá, ele foi para Dubai e ficou três meses também em um cassino, e, depois, seguiu para as Filipinas. Em agosto, ele voltou ao Brasil e conseguiu um emprego no Uruguai, mas logo em seguida chegou essa proposta pelo Telegram — relata Antônio Ferreira, pai de Phelipe.

A oferta feita pela rede social dava conta de uma vaga emprego em um call center de Bangcoc, com salário de US$ 2 mil mais comissões e um cargo de líder em uma equipe. Com as passagens pagas pela suposta empresa, o brasileiro embarcou rumo à Tailândia, onde chegou no fim de novembro e ficou hospedado em um hotel.

— A um amigo, ele falou (por telefone) que ia chegar o motorista que iria levá-lo à empresa. Ele entrou nesse carro e, passadas duas horas, percebeu que algo de errado acontecia. Ele não falou mais nada e sumiu — conta Antônio.

A partir do dia 22 daquele mês, os familiares perderam o contato com o rapaz. A última localização do telefone do brasileiro indica que ele estava em uma estrada próximo a uma área de mata em Mianmar.

Luckas iria trabalhar em um cassino

O relato feito por Antônio Ferreira foi similar ao de Cleide, mãe de Luckas Viana. Ela contou que o filho também tinha experiência trabalhando em cassinos no Sudeste Asiático, onde atuava no atendimento a clientes brasileiros. Ele se mudou para a Tailândia no mês de setembro em busca de novas oportunidades de emprego.

— A ideia era trabalhar em um cassino — diz a mãe do brasileiro, que, segundo ela, chegou a trabalhar em um hostel nos primeiros dias no novo país. — Foi aí que apareceu a vaga pelo Telegram. Ele iria trabalhar como intérprete de brasileiros. Ofereceram moradia, um salário equivalente a R$ 8 mil e um contrato de seis meses.

O local do emprego seria a cidade tailandesa de Mae Sot, que faz fronteira com Mianmar e está a seis horas de carro de Bangcoc. Assim como ocorreu com Phelipe, um motorista da suposta empresa foi buscar Luckas Viana na madrugada. No trajeto, aconteceram trocas de carro, e o brasileiro chegou a realizar trechos da viagem de barco, ultrapassando a fronteira.

— Ele entrou no carro e ficamos conversando. Eu comecei a achar estranho, porque tinha hora que ele falava que ia desligar — lembra Cleide.

Phelipe Ferreira e Luckas Viana ficaram mantidos no mesmo complexo de Mianmar em condições precárias, segundo fontes ouvidas pelo GLOBO. Assim como outras vítimas de tráfico humano na região, eles foram obrigados a aplicar golpes virtuais em pessoas do mundo todo. Nesses locais, os estrangeiros são vítimas de torturas, envolvendo choques e agressões físicas. Ameaças de morte também são constantes.

Gangues e milícias movimentam US$ 3 trilhões ao ano

Mianmar representa um desafio para nações que tentam resgatar e proteger seus cidadãos de esquemas como esses. Nos últimos anos, o país, assim como o restante da região, que inclui Laos, Camboja e Tailândia, se tornou base para grupos criminosos, muitos de origem chinesa, que se aproveitam das vulnerabilidades locais para montarem imensas operações clandestinas.

No poder desde um golpe em 2021, a Junta Militar à frente do país não comanda boa parte do território e se vê envolvida em conflitos armados com diferentes facções de bases étnicas. Grupos criminosos associam-se às diferentes milícias atuantes em Mianmar para garantirem a continuidade dos negócios clandestinos. Em março deste ano, o secretário-geral da Interpol, Jurgen Stock, declarou que o dinheiro movimentado por esses grupos pode chegar a US$ 3 trilhões.

“Impulsionados pelo anonimato online, inspirados por novos modelos de negócios e acelerados pela Covid, esses grupos do crime organizado estão agora trabalhando em uma escala que era inimaginável há uma década”, declarou Stock, em uma coletiva de imprensa. “O que começou como uma ameaça criminal regional no Sudeste Asiático tornou-se uma crise global de tráfico humano, com milhões de vítimas, tanto nos centros de fraude cibernética como nos alvos”.

As vítimas levadas para atuar nesses golpes virtuais ficam mantidas em complexos que funcionam como prisões. É o caso do KK Park, na fronteira entre a Tailândia e Mianmar. Identificado como Lucas, uma das vítimas desse esquema descreveu o local à emissora alemã Deustche Walle em uma reportagem publicada em janeiro deste ano.

“Trabalhamos 17 horas por dia, sem queixas, sem férias, sem descanso. E se dissermos que queremos ir embora, eles nos dizem que nos venderão ou nos matarão”, disse Lucas, que é nascido na África Ocidental.

Alertas de embaixadas brasileiras

A Embaixada do Brasil em Yangon, capital de Mianmar, informou que desde setembro de 2022 recebe notificações de aliciamentos de brasileiros para trabalhos análogos a escravidão. Em geral, os alvos são seduzidos por vagas de emprego supostamente no setor financeiro da Tailândia, com salários competitivos, comissões e passagens aéreas.

Os brasileiros são levados a assinar cláusulas de confidencialidade antes de serem transportados até Mianmar. Eles, então, têm os passaportes retidos e são submetidos a longas jornadas de trabalho, privação parcial da liberdade de movimento e possíveis abusos físicos.

A Tailândia também é alvo de alertas do gênero pelo governo brasileiro. Em hostels, vagas de emprego nos arredores de Bangkok são oferecidas à brasileiros. No entanto, após aceitarem o trabalho, as vítimas são levadas por grupos armados até Mianmar, onde atuam para empresas fraudulentas e em condições precárias.


BS20250213135541.1 – https://extra.globo.com/brasil/noticia/2025/02/trafico-humano-em-mianmar-mafia-chinesa-mantem-pelo-menos-oito-brasileiros-em-cativeiro.ghtml

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