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Um gigante coberto com uma colcha de boneca

18 de março, 2024

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

Um gigante coberto com uma colcha de boneca

Cheguei atrasada no consultório, mas o Júnior da portaria me pediu pra esperar só um pouquinho. Era pra assinar o recebimento de uma correspondência importante. Esperei. Na verdade, já tinha começado o dia esperando porque o chuveiro não esquentava por nada. Antes do banho, a água do café fez que nem viu que eu já tinha ligado o fogo da chaleira. E depois, um dos elevadores do prédio quebrou. Quando o outro – chamado por Deus e pelo mundo inteiro – chegou, chegou com a Blue, a cachorrinha da cobertura, que meio que não quis me deixar entrar. O vizinho negociou pra cá e pra lá, ela finalmente me deu licença. Aí na calçada, teve aquela senhora que vinha na direção contrária, e ia pra direita ela também. Pra esquerda, a mesma coisa. Ficamos assim, dançando sem música no meio da rua até eu conseguir me livrar. Quando finalmente rolou, ela me pegou pelo braço e perguntou: que horas são minha querida? Tinha passado da hora já. 

Mas enfim, assinei a correspondência e só consegui abrir agora. Era a ata da reunião de condomínio. Oito páginas. Tô aqui tentando achar alguma linha que tenha valido a minha assinatura. Eu fico impressionada com a autoestima dessa ata. A primeira página é logo um registro com carimbo de cartório pra atestar a veracidade do documento. Minha gente, quanto custa uma carimbada dessa? Porque vê, no meu andar são 8 salas, 23 andares. Precisaram pagar por 184 selinhos + 184 reconhecimentos de firma da assinatura do síndico. Quanto dá isso, assim em Real? Porque não consta aqui na tabela de custos (impressa em A3). Opa, tem que ver isso aí.

Começa com esse “sou de verdade, eu juro!” que é bem típico da segurança exagerada dos portadores de autoestima de ouro, né? Tão seguros, tão seguros, que se olhar bem de pertinho, se vê a dúvida de si do tamanho de um gigante coberto com uma colcha de boneca. Faz de conta que a gente não viu. E segue com o “ao vigésimo oitavo dia do mês de fevereiro de 2024, reuniram-se virtualmente através do aplicativo de reuniões virtuais Zoom Meeting”. Minha gente, é tanta formalidade, tanto juridiquês pra dar conta do vazamento do banheiro do térreo e da demarcação das vagas da garagem que se editasse direitinho dava pra imprimir em um post-it. O que faz essa gente pensar que pode usufruir do tempo dos outros tão deliberadamente? Quando eu passar agora na hora do almoço, o lixinho da recepção estará cheio de envelope fechado. Ninguém vai ler isso não.

De manhã, enquanto eu assinava, Júnior me contou que dos 184 condôminos, só 3 tinham aderido ao bolão da dupla de páscoa. “Pois sexta-feira, passei bilhete embaixo da porta do povo às 18h lembrando que se a gente ganhar, vai ter foto da farra no whatsapp do condomínio. A galera com medo de ficar com inveja, já amanheceu o dia assinando a lista, 72 até agora”. Pronto. Tá aí uma comunicação eficiente. Em tempo, eu já tinha assinado a lista do bolão na sexta. Tem coisa que é melhor não atrasar. Boa semana, queridos.

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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