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Cabelo ao vento

29 de setembro, 2020

Gal Costa fez 75 anos na semana passada. Dela, penso que preciso dizer muito pouco, já que posso apostar o dedo mindinho dos dois pés […]

Cabelo ao vento

Gal Costa fez 75 anos na semana passada. Dela, penso que preciso dizer muito pouco, já que posso apostar o dedo mindinho dos dois pés que cada um de vocês, que lê esse texto, já a conhece. Já ouviu sua voz sem defeitos – e, mais impressionante, sem esforço – e já foi exposto, ainda que por vídeo, à sua presença, em algum palco grande ou pequeno, a fazer o que poucos fazem com a mesma força que ela: cantar. Ano passado, tive essa experiência, pela primeira vez, ao vivo. Em um teatro pequenininho aqui em São Paulo. Somente Gal, Guilherme Monteiro e um violão. Foi tão bonito.

No sábado que passou, convencida de que estava de novo em um ao vivo – só que dessa vez nesse ao vivo virtual que nos é possível – vi e ouvi Gal também aqui em São Paulo, comemorar o próprio aniversário. Fiquei comovida. Foi um bom show, mas o que me emocionou foi a companhia de minha filha Lara que na ocasião do ao vivo, vivo mesmo, estava em férias pernambucanas. Lalá cantou quase todas, sentadinha no chão da sala, repercutindo comigo, com minha mãe e minha tia cada movimento, escolha de repertório, comentário paralelo tanto de Gal quanto de nosso grupo que se falava também virtualmente. Tão longe, tão perto.

Quando a transmissão acabou e mainha e tia Lena foram dormir, eu e Lalá buscamos mais Gal no Youtube e acabamos encontrando um show antigo em que ela convida Elis Regina ao palco. Rapaz, aí foi grande, viu? Como estavam soltas. Livres. Quase loucas. Que coisa linda.

Estamos lendo em dupla Mulheres que Correm com os Lobos, o clássico de Clarissa Pinkola Estés. Ainda no primeiro capítulo, a autora nos conta a história de La Loba. Uma velha “que vive num lugar oculto de que todos sabem, mas que poucos já viram”. La Loba recolhe ossos e canta para eles. Até que os ossos, pouco a pouco, se forram de carne e músculo. Ela segue cantando e os ossos, a carne, os músculos, se tornam vida: um lobo, que corre pelo deserto. À medida que corre, ele se transforma em uma mulher livre. A mulher que ri. A mulher selvagem.

“Por isso, diz-se que, se você estiver perambulando pelo deserto, por volta do pôr do sol, e quem sabe esteja um pouco perdido – não estamos todos? –, cansado, sem dúvida você tem sorte, porque La Loba pode simpatizar com você e lhe ensinar algo…”

Já passava de meia noite, mas o que vimos ali, minha filha e eu, foi uma frestinha de La Loba, dos ossos, do lobo, da mulher de vento no cabelo, da vida. O bis escolhido para o show de aniversário foi Festa no Interior e nada podia ser mais simbólico do que essa escolha. Que o nosso interior possa sempre, depois de recolher os ossos, cantar em festa. Viva Gal, viva Elis, viva Lalá, mainha, tia Lena e eu. Viva a força das mulheres selvagens quando se juntam. Boa semana queridos.

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que…

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