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17 de maio, 2021

As cartas na mesa da CPI   Cabeça na areia Vamos recapitular: um grupo minoritário mas expressivo de senadores, antípodas daqueles que dizem ‘sim!, senhor’ […]

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As cartas na mesa da CPI

 

Cabeça na areia

Vamos recapitular: um grupo minoritário mas expressivo de senadores, antípodas daqueles que dizem ‘sim!, senhor’ ao governo – qualquer governo –, conformou quórum suficiente para instalar Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o desempenho de Bolsonaro e sua turma no enfrentamento da covid-19. O primeiro movimento do Executivo foi o do avestruz, que enfia a cabeça na areia para não ver o perigo: impedir a Cpi.

Não deu certo; ante a relutância da mesa diretora do Senado, recém eleita com apoio dos bolsonaristas, a minoria apelou ao Stf que, em liminar logo referendada em plenário, mandou instalar a Comissão.

Ameaça superada

Em polvorosa os estrategistas (?) do governo tentaram inviabilizá-la ou ao menos adiar sua operação, a estumar o fantasma do SarsCov-2 que, de fato, deita e rola em ajuntamentos.

Os propositores, agora membros da Cpi ignoraram a ameaça: se o Senado e a Câmara, com devidos cuidados discutem e votam até emendas constitucionais, por que? não poderiam fazer funcionar uma comissão?, que ademais pode alternar e combinar ações presenciais e remotas sem maiores problemas? – como, aliás, tem demonstrado na prática.

Jogo sujo

Entretanto, com a teimosia típica dos apedeutas que fazem de novo o que não deu certo, os senadores mais próximos a Bolsonaro insistiram na tecla da negação e remendaram o chavão de que é preciso olhar pra frente, deixar pra depois o exame dos erros passados.

Outra vez derrotados, a contragosto fingiram aceitar enfim a Cpi só para tentar desvirtuá-la, inserindo em seu escopo o acompanhamento dos recursos federais repassados a estados e municípios para fazer face à covid-19. E na defesa do movimento obviamente diversionista o governo jogou sujo: o próprio chefe do Executivo difundiu informações fajutas sobre transferências da União a municípios e unidades federadas.

Vidas dispensáveis

Pelo menos nas duas primeiras semanas de trabalho o estratagema resultou inócuo; conhecidos, os fatos ganharam força própria e a iniquidade das intenções de Bolsonaro revelou-se logo nos primeiros depoimentos.

Nem foi preciso muito esforço, como antevi na semana passada: o presidente adrede confessara intenção de dar raia livre ao vírus para atingir imunidade de rebanho, mesmo ao custo de centenas de milhares de vidas. Vidas dispensáveis para sua ausência de empatia, racionalizada nos preceitos ultraliberais do ministro da Economia: morrem velhos, doentes, os ‘três p’ (pobres, pretos, periféricos) cujo resgate custa caro e contraria a fria racionalidade econômica. Em tal entendimento, deixá-los morrer é recomendável.

Tudo (quase) feito

Cpi que segue o inaugural e esclarecedor depoimento de Mandetta, que sabe o que diz e das consequências do que diz, corroborado pelo do ex-ministro Teich, o breve e canhestramente contestados, ambos, na participação anódina do atual titular da Saúde, que mais confirmou que refutou os erros e omissões – todo o conjunto resulta no que já se imaginava: estão mais que sabidas a inépcia, incompetência e deliberada inação do governo nesta emergência nacional.

À Comissão cabe, reitero o que escrevi, ordenar o processo, identificar os erros, crimes e individualizar responsabilidades, para que cada qual responda por seus atos.

Evidência concretizada

Em procedimentos como os da Cpi da covid-19 costumam ganhar corpo detalhes, incialmente desconsiderados em sua aparente pequenez, no entanto de grande potencial explosivo.

Foi assim no processo que resultou no impeachment de Collor: fortes indícios de corrupção apurados na Cpi do Pc Farias, denúncias do irmão do presidente, evidências de lavagem de dinheiro, a ‘operação Uruguai’… – nada disso parecia servir para caracterizar crime nem impressionar a opinião pública até que apareceu, a concretizar as malfeitorias do presidente e sua turma, uma singela Fiat Elba, veículo dito popular com que ‘amigos’ presentearam a mulher do presidente.

Ciclismo perigoso (i)

Fenômeno análogo ocorrera antes, no primeiro ano daquele mesmo governo, embora com sinal trocado quanto a motivações (espúrias) e resultado (injusto). Alceni Guerra, administrador que se destacara quando prefeito de Pato Branco, no Paraná, era ministro de Collor quando foi acusado de promover concorrência irregular na aquisição de bicicletas.

Era falsa, a acusação, mas em meio escândalo da denúncia Alceni teve a infeliz ideia de passear com os filhos na área central de Brasília, cada qual em sua… bicicleta.

Ninguém ouviu seus protestos nem considerou as provas, que exibiu, de sua inocência: o inexistente pecado ganhou foros de verdade por que materializado nas ‘bicicletas do Alceni’.

Ciclismo perigoso (ii)

Figuradas no esforço que as faz mover, bicicletas voltaram à cena nas famosas ‘pedaladas’ fiscais do processo que resultou no impeachment de Dilma Rousseff.

Até o frio mármore do Palácio do Planalto sabe que Dilma caiu em função da incompetência em administrar a máquina de governo e da sesquipedal inabilidade política, escancarada nas relações com estados, municípios e sobretudo o Congresso, afora os conflitos que acumulou intramuros. Nada disso configuraria razão jurídica para defenestrá-la, no entanto encontrada nos artifícios fiscais com que seu governo buscou mascarar reincidentes irregularidades no manejo das verbas públicas.

Caiu porque mentiu

Outra analogia poder-se-ia encontrar no processo de impeachment que, mesmo inconcluso, forçou a renúncia de Richard Nixon à presidência dos Estados Unidos. Havia suficientes razões para impedi-lo, de ordem ética, moral e, obviamente, políticas mas ele caiu porque o governo que presidia tentou encobrir um crime de seu partido – a invasão da sede do partido adversário no edifício Watergate, cujo nome passou a denominar o escândalo.

Comparações sugestivas emergiriam, a lembrar por que foi preso o emblemático capo mafioso Al Capone, mas deixa pra lá.

União e reciprocidade

Já discorri aqui da necessidade de unir forças contra o obscurantismo enquistado no poder, preferentemente impedindo Bolsonaro já, alternativamente derrotando-o em 2022. Lula e seu Pt, se quiserem serão destacados partícipes deste projeto, já deslanchado por representantes de partidos cujas tendências vão da centro-direita à centro-esquerda e apoiado por manifestações de amplos setores sociais.

Mas alguma reciprocidade será necessária: ao menos superar a monocórdia tese que divide, afasta em vez de aglutinar, a que vislumbra ‘golpe’ contra Dilma no processo rigorosamente legal que a retirou da presidência.

Resumo da ópera

De igual forma há que preservar a imagem da ex-presidente e respeitar-lhe a biografia, a participação na luta contra a ditadura quando isso implicava riscos pessoais – em seu caso concretizados na prisão arbitrária e tortura nos porões da repressão.

Resumo da ópera: como nos tempos heroicos da luta contra os governos militares, de novo é preciso hierarquizar conceitos, prioridades e unir forças contra o inimigo comum. No combate a Bolsonaro e aliados, em sua marcha rumo à Idade Média, cabe lembrar a radical, necessária profissão de fé de Winston Churchill: “Se Hitler invadisse o inferno, eu apoiaria o Demônio.”

Crimes em série

De volta à Cpi e suas perspectivas: ela avançou muito nas duas primeiras semanas, já exibe um quadro de incompetência e-ou deliberada atuação contra a vida do governo Bolsonaro, falta pouco para comprovar crimes em série do presidente e seu entorno, todos e cada um suficientes para embasar processo de impeachment.

Esse pouco que falta não reside necessariamente em evidências factuais; importam mais concretudes como a da Fiat Elba ou as pedaladas do governo Dilma.

Cartas na mesa

A Cpi recebeu do ex-ministro Mandetta cópia da carta que entregou a Bolsonaro pouco antes de ser demitido, alertando-o para a gravidade da pandemia e recomendando linhas de ação capazes de reduzir danos e, principalmente, salvar vidas.

Fruto (involuntário) do depoimento do ex-secretário de Comunicação da Presidência, encontrou outro documento que atesta a incúria, omissão e erros do governo Bolsonaro: a correspondência remetida pelo principal executivo da empresa farmacêutica Pfizer na América Latina (que confirmou as gestões em seguida), a oferecer vacinas para entrega ainda no ano passado; em estimativa conservadora, especialistas calcularam que, se iniciada à época, a imunização teria permitido salvar pelo menos 5 mil vidas.

Interação, mobilização

Seriam suficientes?, os dois documentos, para conferir aos crimes de Bolsonaro aquela materialidade de que se tratou? – não só a jurídica, a fundamentar processo de impeachment, mas também a que dá forma concreta aos crimes e permite imediata interação com as pessoas, mobilizando a opinião pública.

A última pesquisa divulgada revela uma pequena, mas nítida tendência de aprovação popular ao impedimento do presidente: 49% dos entrevistados pelo Datafolha declararam-se favoráveis enquanto 46% opinaram contrariamente; destaque-se que pela primeira vez o percentual a favor é majoritário.

A virada é significativa: sem apoio popular não haverá impeachment e teremos de aguentar ainda mais que ano e meio de (des)governo iníquo, além do risco não de todo afastado de reeleição do pernicioso presidente.

Tem que perguntar!

Ao comentar em sua coluna na Folha de S. Paulo as três primeiras sessões da Cpi, o jornalista Ruy Castro ofereceu a seus membros sugestões sobre como inquirir os convocados. Sugestões mais que oportunas se os senadores, quase todos políticos veteranos mas calouros em investigações desperdiçaram, naquelas ocasiões, oportunidades de bem elucidar os fatos, gastando tempo a discursar em vez de inquirir.

Por isso o primeiro conselho do emérito repórter que passou a vida a perguntar, como disse, é pressionar a testemunha com indagações curtas, diretas e não aceitar respostas evasivas, rebatendo-as com reinquirições imediatas a cobrar objetividade – de preferência um ‘sim’ ou um ‘não’.

Deu certo… e errado

Não dá pra saber se os senadores leram e apreenderam a lição do jornalista, mas foi nítida a mudança quando a Cpi precisou ouvir outro depoente escorregadio; a exemplo do ministro da Saúde na quinta-feira passada, o ex-secretário de Comunicação do governo tentou esquivar-se e passar anodinamente pela inquirição.

Dessa vez, porém, os senadores não caíram na esparrela e muitos deles, a começar pelo relator, atuaram como se aceitassem as sugestões de Ruy Castro. Deu certo, sob o ponto de vista da Comissão e de quem quer ver tudo esclarecido e muito errado para Fábio Wajngarten, pior ainda para Bolsonaro e seu governo.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])

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