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16 de agosto, 2021

A derrota de Bolsonaro e o ministro-pastor da injustiça   Uma derrota, … O presidente da República foi derrotado fragorosamente na tentativa de impor ao […]

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A derrota de Bolsonaro e o ministro-pastor da injustiça

 

Uma derrota, …

O presidente da República foi derrotado fragorosamente na tentativa de impor ao Congresso e ao Judiciário um retrocesso absurdo nos procedimentos eleitorais, em sua obsessão pelo tal ‘voto impresso’ em substituição ou adição à votação pela urna eletrônica. Ele insistiu, ofereceu vantagens, vociferou, ameaçou represálias… e perdeu feio.

… nenhuma vitória

Estranhamente – o Brasil não é mesmo para principiantes, como dizia Tom Jobim – ninguém saiu vitorioso dessa batalha. Bolsonaro perdeu mas quem defende as instituições não venceu.

Tento explicar o paradoxo, mas antes quero registrar a participação de uma leitora e sua precisa síntese, a mapear caminhos na proteção de nossa ameaçada democracia.

Caminhos da democracia

Agradeço a mensagem generosa de Bartyra Soares, ilustre intelectual pernambucana que ainda não tenho a honra de conhecer pessoalmente – sei de seus méritos por amigos comuns, aos quais reivindico intermediação para encontrá-la – pessoalmente, repito, porque no campo das ideias sempre estivemos próximos; ao menos a mim assim parece.

Digo-o a partir da conclusão de sua mensagem, na qual destaca a urgência de “denunciar, despertar, indicar os caminhos da sustentabilidade da democracia”.

Desfile ridículo

Bolsonaro bom é Bolsonaro acuado, já escrevi, repeti e reitero. Ele sofreu derrota acachapante em sua pretensão, sequer lhe valeu o ridículo desfile de carros de combate na Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios, tentativa idiota de pressionar os parlamentares.

Deu-se o contrário, o intento de mostrar força exibiu só fraqueza, as lagartas dos tanques passaram-lhe sobre os pés e os de seus generais (e almirantes, brigadeiros…), desorientados sobre como e por onde sair da esparrela em que se meteram.

Desrazões

No entanto a refrega perdida não o desanimará. Em vez disso buscará bodes expiatórios a quem atribuir aleivosias e as mais perversas intenções, traições; desdirá o que dissera e dirá novas mentiras em busca de seu objetivo: desacreditar a disputa que já sabe perdida em 2022 e repetir a infame tentativa de seu ídolo Donald Trump de melar o processo, certamente com recurso à mesma e ensandecida violência daquele ataque ao Capitólio; por algum raciocínio que a razão desconhece, o ex-tenente espera melhor sorte.

Construir caminhos

Não se pode dar raia livre a Bolsonaro, há que lhe contestar passo a passo as veleidades ditatoriais, mesmo as mais estapafúrdias. Quem se opõe a regresso aos tempos da Inquisição precisa “denunciar, indicar os caminhos…”, como na lúcida recomendação de Bartyra Soares.

Aos inseguros quanto à exata senda a percorrer sugiro apostar na proatividade e seguir em frente: “Caminante, no hay camino; se hace camino al andar”, ensinou o poeta Antonio Machado.

Se houver concessões, …

Nos dias que precederam o sepultamento das investidas bolsonárias contra a urna eletrônica noticiaram-se preocupações de deputados, senadores e consequentes propostas de atenuar a crise, encontrar resultantes intermediárias entre as forças antagônicas para evitar aguçamento da crise institucional.

Seria conveniente, conforme os soit disant adeptos de negociações e consensos, contentar Bolsonaro com algum gesto, por exemplo reconhecer-lhe a validade das supostas preocupações com a segurança das eleições, de maneira que ao fim e ao cabo não houvesse vencedores nem vencidos.

…eles avançam

São gravíssimo erro, tais interpretação e proposta. Não há pensamentos dissonantes quanto à maneira de votar, só arreganhos de candidato em queda livre nas pesquisas contra as regras do jogo – portanto nada se haverá de conceder-lhe.

Pior ainda é a ideia de propor saídas honrosas ao presidente, na expectativa de que se contente com os ganhos já obtidos. A história mostra que a leniência com tiranos, na esperança de apaziguá-los, só lhes estimula o apetite ditatorial; qualquer aceno eles entendem como fraqueza e recrudescem nas investidas autoritárias.

Mudou? Nem tanto

Quem ignora a história condena-se a repeti-la – permito-me adaptar e transpor a nosso tempo e lugar, preservando-lhe a essência, o pensamento do filósofo conservador Edmund Burke.

Inevitável lembrar como Hitler, populista só um pouco menos tosco que Bolsonaro, solapou com mentiras, promessas vãs e sobretudo audácia as bases democráticas da efêmera República de Weimar, usando as garantias do estado de direito para destruí-lo.

Ah!, são outros tempos, hoje não se aceitam com naturalidade regimes de exceção, a democracia é um valor consolidado – objetarão os otimistas de plantão.

Sim, muita coisa mudou mas permanece a sanha de candidatos a tirano que entretanto se adequam às circunstâncias, sem abdicar do objetivo.

Semelhanças assustam

Há exemplos de sobra neste exato momento de conturbada evolução da humanidade e nem me detenho no malogrado Trump (ufa!) ou em seu simétrico, Putin.

Mais me assustam as semelhanças deste instável Brasil com a Turquia de Erdogan, as Filipinas de Duterte, a Hungria de Orban, a Polônia de Duda…

E se me cobram trocar o signo ideológico (haja paciência!…), cito a Venezuela de Chávez/Maduro e a Nicarágua de Ortega – nesse último caso um trágico desvirtuamento de experiência que já fora promissora.

 

Diferenças confluentes

Já sei da objeção dos inveterados panglossianos, dirão que são povos, nações e estados muito diferentes do Brasil. Admitiria de novo a objeção não fosse um conjunto de coincidências suficiente para caracterizar, se não identidade de propósitos, tendências político-ideológicas e comportamentos comuns.

Em cada um desses casos um chefete populista assumiu legitimamente o poder e fê-lo em circunstâncias parecidas: descrédito dos estamentos políticos tradicionais, polarização entre populismos, sociedades marcadas por enormes desigualdades, economias em permanente crise, variados graus de aliciamento e cooptação da hierarquia militar pelas classes dominantes – os donos do dinheiro grosso e os cardeais da política.

Cortina de fumaça

Em ambiente assim é que se move Bolsonaro, que de tanto exercitar um modo canhestro de fazer política (governar?, nem pensar!), cometer crimes em série e pressionar as instituições, acabou encontrando um jeito (mesmo tosco) de sobreviver: sempre que algo mais sério o ameaça – como as recentes maracutaias descobertas pela Cpi da pandemia – ele inventa factoides que desviam a atenção do que de fato interessa.

Foi assim que usou, cortina de fumaça, o natimorto projeto de retorno ao voto impresso para obscurecer ou esmaecer os efeitos das investigações.

Pressionar – e ir além

Sua derrota no plenário da Câmara – por larga margem, não importa o que diga – foi, sim, desmoralizante mas não configura exatamente uma vitória da democracia.

O presidente retomou logo a seguir os ataques à urna eletrônica e tudo indica o fará até as eleições, a preparar terreno para denunciar fraudes quando os eleitores despejarem-no do Alvorada e Planalto.

Por isso são importantes as reações institucionais aos atentados à democracia que brotam de cada manifestação sua: é preciso mantê-lo sob pressão, na defensiva – e ir além.

Catástrofe possível

Ir além, no caso, significa dar consequência prática às investigações, denúncias e demais procedimentos encetados pelo Judiciário contra os atos golpistas do chefe do Executivo.

Enquanto ele ainda pode pagar o preço cobrado pelo centrão para que a Câmara não inicie processo de impeachment, as notícias-crime propostas ao Stf precisam gerar consequências, mesmo que para isso deva-se contornar o procurador geral da República que se omite para proteger Bolsonaro.

Definitivamente, não dá pra correr o risco de que permaneça ainda um ano e quatro meses a utilizar a força da Presidência para solapar o estado de direito e até, a repetir a catástrofe de 2018, conseguir mais quatro anos no poder.

Conterrâneo arguto

– Como um ministro da Educação pode pensar assim, em um país que produziu educadores do quilate de Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira? – indigna-se Ulisses Breder Ambrósio, meu conterrâneo.

(Sim, ele é de Rio Novo; apesar de umas poucas e sentidas defecções, intelectuais rionovenses não costumam negar fogo.)

Refere-se, Ulisses, à fala do ministro Milton… (qual é mesmo o sobrenome dele?), um pastor presbiteriano que, consta, dá aulas mas é difícil chamá-lo professor, para quem “a universidade é para poucos”.

O pastor acerta…

É triste mas no factual, aqui e agora o pastor está certo, o ensino superior brasileiro tem sido mesmo pra poucos.

Raramente a turma do andar de baixo, a dos ‘três pês’ – pretos, pobres, periféricos – consegue ultrapassar a barreira do ensino médio; dos que o concluem a maioria é derrubada no vestibular, Enem e demais processos seletivos, inclusive na competição pelas bolsas que dão acesso a escolas particulares; e dos poucos que se espremem para sair na ponta do funil (com um moedor de sonhos no gargalo), à maioria costuma restar a decepção mui bem ilustrada no samba de Martinho da Vila: […] Livros tão caros, tanta conta pra pagar, meu dinheiro muito raro […].

…mas está errado

Contudo o pensamento do ministro-pastor vai além da constatação: em vez de lamentá-la, naturaliza a desigualdade.

Nisso é coerente membro do governo Bolsonaro, essencialmente elitista, cujo ministro da Economia também estranha que o porteiro de seu prédio tenha filho na universidade e lamenta que empregadas domésticas gastem dólares em viagens à Disney.

Injustiça justificada

Não é preciso ser bolsominion, no entanto, para defender tamanha iniquidade. Já ouvi expressão quase idêntica à do ministro-pastor e relatei-a aqui, faz tempo, de respeitado intelectual ao qual muito devem a ciência e pesquisa brasileiras.

Quero crer que se aferrava a um tempo passado, dele e meu, em que formar-se em faculdade garantia ascensão socioeconômica; em seu caso foi primeiro degrau de brilhante carreira acadêmica, o que de pronto desautoriza-o justificar a injustiça – ou dever-se-ia conjeturar da existência de sábios-burros?

O que é pra poucos

Meu respeitável interlocutor referia-se à graduação universitária como a víamos em meados do século xx, no Brasil e demais nações então ditas subdesenvolvidas – um passaporte para a ascensão socioeconômica – e estendia o conceito à progressão em carreiras acadêmicas; o que, aí sim, é pra poucos.

Explico, antes que me rotulem elitista: a evolução na academia, em qualquer de suas três vertentes básicas e cada qual com múltiplas nuances – magistério, pesquisa e desenvolvimento, extensão universitária – requer especial dedicação, disciplina e sacrifícios a que muito poucos se habilitam e dispõem-se.

Educação e cidadania

Assim me parece clara a dissonância: hoje a graduação é antes conclusão de um mínimo processo educativo que etapa inicial da progressão acadêmica.

Em nosso modelo educativo a atenção às crianças pequenas deixa lacunas que a educação fundamental tentará preencher, o grau intermediário precisa superar as deficiências do anterior e à graduação universitária, última oportunidade do estudante médio, compete completar a formação – e é então que se inicia a vida adulta, dita ‘produtiva’ na qual o jovem assume-se profissional e ingressa no mercado de trabalho, torna-se consumidor e contribuinte – inclusive via Uber, como menosprezou o pastor; eu tenho nada contra.

Finalmente, se bem lhe serviu a formação e pôde aproveitá-la, estará apto a exercitar-se cidadão.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])