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1 de novembro, 2021

Realismo fantástico com prazo de validade   Realismo fantástico “O País está mergulhado em um realismo fantástico” – constata o jornalista, professor e escritor Ailê Selassié […]

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Realismo fantástico com prazo de validade

 

Realismo fantástico

“O País está mergulhado em um realismo fantástico” – constata o jornalista, professor e escritor Ailê Selassié Quintão. Para ele a reeleição, desde que foi instituída, tem estado na raiz das disfunções do sistema político, como detecta no artigo Eleição e reeleição, de 26.10.

Aylê cita Fernando Henrique Cardoso, “…que ponderou depois de cumprir dois mandatos de quatros anos: ‘Foi um erro, a reeleição’.

Ao final do instigante texto, aventa engenhosa fórmula de remover ao menos parte dos problemas: tudo bem se um prefeito, governador ou presidente quiser disputar um segundo mandato, desde que se desincompatibilize, quer dizer, renuncie ao cargo seis meses antes do dia do pleito.

Mais simples

Se implementada, a sugestão de Aylê resolveria diversas questões, a principal delas o desfrute pelos recandidatos dos privilégios conferidos pela máquina estatal.

Mas perguntaria ao brilhante jornalista, de quem tenho a honra de ser amigo, se não seria melhor dar por finda de vez a experiência reeleitoral: ela definitivamente não deu certo, passados 25 anos e três presidentes reconduzidos desde que foi instituída.

Preferiria o modelo mais simples e lógico de um único mandato de cinco anos, como o vigente sob a Constituição de 1946, escoimado da anomalia de cada unidade federada definir o interregno de seus governadores e prefeitos.

Estelionatos eleitorais…

Tenho a impressão de que os problemas começam bem antes dos últimos seis meses de mandato dos chefes de Executivo: iniciam-se, parece-me, no dia da posse, quando o prefeito, governador ou presidente dá partida à campanha pela recondução ao cargo.

Ademais, entre nós o modelo ensejou sucessivos estelionatos eleitorais, como atestam as circunstâncias que favoreceram dois dos três presidentes reeleitos no período.

…de Fernando a Dilma

Fernando Henrique, após fazer o diabo e algo mais para aprovar a reeleição no Congresso, adiou até a reposse em 1999 a drástica e impopular mudança na política cambial que imprimiu formidável desvalorização ao real, a moeda-símbolo dos novos tempos que herdara de Itamar, o antecessor.

Dilma Rousseff procrastinou um duro ajuste nas contas públicas, só deflagrado no janeiro seguinte, para evitar desgaste que lhe impedisse a reeleição em outubro de 2014.

Tempos plúmbeos

É outra história se estava certa a remoção da paridade do real com o dólar, âncora do Plano Real desde 1994, assim como a simultânea implantação de políticas fiscal e monetária de cunho neoliberal no segundo período de Fernando Henrique. Ou se o ajuste de igual índole, meio a contragosto autorizado por Rousseff, era mesmo necessário assim como a subsequente reviravolta que tampouco deu certo e provocou a grande crise que lhe custou o mandato.

Afirmo é que ambos os estelionatos, que desencadearam tempos plúmbeos para ambos – e para o Brasil –, tiveram origem nas respectivas campanhas reeleitorais.

Não esticou

Registro, ademais, o que me pareceu um equívoco no excelente arrazoado de Aylê Selassié quanto à duração de mandatos presidenciais. A folhas tantas ele afirma que “Sarney […] esticou-o [o mandato] por cinco anos e se deu mal”.

Se bem me lembro, Sarney foi eleito (vice de Tancredo) pelo então vigente Colégio Eleitoral, em 1984, para um mandato de seis anos, o qual a Assembleia Constituinte tendia a encurtar para quatro conforme estabeleceria para os futuros presidentes, governadores e prefeitos.

O que seus aliados na Assembleia fizeram prevalecer não foi uma “esticada” do mandato, mas redução de um ano em vez de dois.

Declaração fantástica

A mesma expressão utilizada por Aylê Selassié Quintão – “realismo fantástico” – bem pode servir para qualificar a equivocada, falsa, fantasiosa – portanto fantástica, em acepção menos comum do termo – declaração do presidente do Brasil de que estudos realizados na Inglaterra teriam associado vacinas contra a covid-19 a infecções pelo vírus da Aids.

Quem não conhece Bolsonaro talvez pensasse ser coisa de quem ‘ouviu o galo cantar mas não sabe onde’, como no dito popular; mas os brasileiros que o conhecemos temos certeza de que ele sabe, só quis espantar o galo para terreiro em que não o incomode.

Delírios

Não me acusem, por favor!, de procurar adjetivos que minimizem a mentirosa manifestação do ex-tenente. Está claro que deliberadamente mentiu e o fez para outra vez desmerecer as vacinas, que sempre preteriu em favor de inócuos “tratamentos precoces” com as cloroquinas da vida.

O que me parece é que a mais recente (até hoje, 30.10.2021) verbalização dos absurdos presidenciais reúne mentiras – e equívocos, fantasias – dignas de figurar nos mais tétricos delírios relatados nos romances de Gabriel García Marques, Manoel Scorza, Alejo Carpentier…

Reversão desdenhada

Só não me perguntem por que Bolsonaro reitera seus delírios particulares, como o de desdenhar a imunização que lenta mas persistentemente, apesar do atraso que provocou, reduz o número de casos de covid-19 e mortes a sua conta.

É óbvio que a reversão de expectativas beneficia-lhe o governo: mesmo que não tenha contribuído para o feito – ao contrário, sempre duvidou de vacinas e tentou (ainda tenta) obstá-las –, a regressão da pandemia faz diminuir a tensão social e enseja alguma recuperação da atividade econômica, eventualmente capaz de deter o aumento de sua reprovação pela opinião pública.

Teimosia ou estratégia?

Não dá para avaliar as ações do presidente com os habituais instrumentos da razão, ele é desarrazoado (irracional?), é preciso usar outros parâmetros.

Estaria? aferrado a opiniões que emitiu lá na chegada da covid-19 – quando disse que seria apenas “uma gripezinha” e não pararia o Brasil – só por teimosia?, pra não dar o braço a torcer?

Como soe acontecer a contumazes mitômanos, estaria? a acreditar nas próprias mentiras?

Ou, como especulam alguns analistas, seria estratégia para encerrar uma crise sobrepondo-lhe outra e afinal anestesiar a sociedade com o rol infindável de absurdos?

À falta de melhor…

Inclino-me a crer que Bolsonaro e sua troupe atrapalhada têm nenhuma capacidade de engendrar estratégias dessa ordem, mesmo equivocadas.

Seus desatinos são só isso: decisões, ações e omissões destrambelhadas que afundam a nação enquanto tentam conduzi-la ao passado – aos tempos da ditadura e suas arbitrariedades, à prisão, tortura e assassinato dos opositores – ou, quem sabe? ao obscurantismo medieval sob a égide de rediviva “santa e bendita Inquisição”?

No máximo, o ex-tenente terá percebido que a sobreposição de crises adia o veredito da opinião pública quanto a suas insanidades e, à falta de melhor, persiste em reproduzi-las em série.

Bomba no colo

Tal estratégia – se de estratégia é que se trata – tem nenhuma possibilidade de dar certo. Como escrevi na semana passada, a Cpi da covid-19 produziu um petardo contra o presidente e aliados em função de seu comportamento durante a pandemia; o artefato de muitos quilotons repousa no colo de Bolsonaro.

Tudo parece indicar que desta vez não lhe valerão os artifícios habituais: ou ele desarma a bomba ou ela explodirá, destruindo-lhe o governo.

A ver no que dá.

Autodefesa

Enquanto não se sabe o que vai dar – “política é como nuvem”, dizia o matreiro político mineiro José de Magalhães Pinto, a sugerir que assume novas formas a cada momento, ao sabor dos ventos –, convém atentar para o comportamento dos congressistas em meio à grave crise institucional em que imergimos.

Preocupa constatar que suas excelências estão nem aí, fazem cara de paisagem ante os riscos impostos às instituições e aproveitam a turbulência para emplacar mudanças na legislação – até na Constituição! – que lhes tragam benefícios, inclusive meios de proteger-se contra investigações da Justiça. E muitos parlamentares têm muito o que explicar à Justiça e à sociedade.

Proposta estapafúrdia

Não é razoável sepultar todos os políticos na vala comum dos incompetentes e-ou corruptos mas, convenhamos, suas excelências esforçam-se para enfiar a carapuça.

Não bastassem a já consumada invalidação de dispositivos legais capazes de punir transgressões de agentes públicos, inclusive parlamentares; a tentativa, em curso, de minar a autonomia do Ministério Público; a recusa em discutir a aplicação imediata de sentenças confirmadas em segunda instância, quando se esgotam o contraditório e a consideração de provas – e eis que emerge no Congresso uma estapafúrdia proposta de conceder a ex-presidentes da República um mandato vitalício no Senado.

Medo da Justiça

É indigente, primária a manobra dos congressistas bolsonários que tentam assegurar ao chefe, se defenestrado do governo como antecipam as pesquisas, foro privilegiado que o livre ou pelo menos retarde responsabilização pelos muitos crimes de que é acusado.

Oferecem-lhe, os amestrados parceiros no Congresso, alternativa menos drástica que a já sugerida desistência de disputar a reeleição e em vez disto candidatar-se ao Senado, ou mesmo pleitear retorno à Câmara dos Deputados.

Tudo isso por que o presidente, dizem ‘em off’ frequentadores do Palácio do Planalto, pela-se de medo de enfrentar a Justiça.

Meses de angústia

Se esse conjunto de fatos, fenômenos e circunstâncias não for suficiente para convencer os representantes do povo, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, de que já passa da hora de livrarmo-nos deste presidente anômalo, será preciso votar em outubro de 2022 – longos onze meses de angústia! – para encerrar no 1º de janeiro seguinte este catastrófico período de nossa história.

E ainda sob a expectativa, improvável embora, de que Bolsonaro consiga recuperar-se para reencenar a tragédia de 2018.

Sei, leitor; a mera conjetura é apavorante; mas o desastre não está afastado.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])