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Deixar voar

17 de janeiro, 2022

Quase desisti ainda no embarque. Distanciamento fictício na fila, desobediência na chamada dos assentos, malas que precisarão mesmo ser despachadas, senhora, a aeronave está lotada. […]

Deixar voar

Quase desisti ainda no embarque. Distanciamento fictício na fila, desobediência na chamada dos assentos, malas que precisarão mesmo ser despachadas, senhora, a aeronave está lotada. E lotada era tudo que eu não precisava ouvir num fim de janeiro de 2022, Brasil sem testes disponíveis, muitos em cada poucos amigos infectados. Mas há de bancar as escolhas, não é? Embarquei. Embarcamos. 

Já no corredor do avião, a vizinha de trás encosta confortavelmente a pontinha do pé no meu calcanhar, e eu calculo a distância de um jogador de basquete imaginário deitado entre a minha pontinha e os calcanhares da família à minha frente. Os bagageiros misteriosamente vazios. O vaporzinho do ventilador me fazendo pensar longe e trágico. Caos. Sentamos a família e eu. Na 12A e B, as duas filhas, na C, o pai. A mãe está na 12D, e eu logo ali na 14C que só percebi agora que aviões suprimem a fileira 13. Todo mundo ciscando naquela ajeitada pré-decolagem. 

Baixei dois episódios longos de podcast para acompanhar meu sudoku. Trouxe o lápis, a borracha e o apontador, mas não encontro o carregador e sudoku.  Ficaram. De maneira que não posso gastar a bateria com o podcast, nem preencher os vaziozinhos que me abrandam a angústia. O comandante fala um tanto de coisa, a caixa de som está estourada e o avião começa a andar devagarinho. Depois das almofadas das meninas – e dos casacos, e dos celulares,  dos fones, do QR code do Wifi, das águas, dos subam as máscaras, do chiclete pra dor de ouvido – a mãe volta pra 12D. Segura tensa no braço da poltrona, torce os pezinhos num All Star branquíssimo, ou é novo,  ou acaba de ser lavado, franze a testa, prende e solta os cabelos. As meninas já se distraíram e ela já pode ter medo. Vamos decolar. O pai, de quem eu já nem lembrava, olha para a mãe. Parece ter visto nela o que sente. Ele segura a sua mão com força – bonitas elas, as mãos e a moça – e ela fecha o olho também forte. Voamos, ela ri. E só agora me dei conta de como é moça. Um sorriso aliviado, tão fresquinho. 

Foi a cena mais doce que vi hoje. Não a da ajuda dele, que foi mesmo uma amor, mas a da capacidade dela de encontrar conforto no gesto. E, ainda mais, o truque que se deu. A subida era o perigo. Agora que estamos no céu, tudo sob controle? Enquanto escrevo, estou na terceira hora de voo e até aqui, nenhum espirro, nenhuma tosse, nem mesmo uma limpadinha de garganta. O fone rasgando meu tímpano, que Deus me livre ouvir. Sem saber, a moça me fez arriscar a bateria. Quando chegar em São Paulo, resolvo.

Deixar voar. Quero. Baterias se recarregam de uma maneira ou de outra, as do celular ou as nossas. Estamos em movimento e o mais difícil até aqui foi a decolagem. As desobediências, os distanciamentos, os vizinhos, os calcanhares, os cálculos, os vazios e as angústias, vêm junto, na bagagem de mão ou despachados. Importante mesmo é embarcar. Boa semana, queridos.

 

Roberta D’Albuquerque é psicanalista, autora de Quemmandaaquisoueu – Verdadesinconfessàveissobre a maternidade e criadora do portal A Verdade é Que… [email protected] https://www.facebook.com/roberta.dalbuquerque https://www.instagram.com/robertadalbuquerque/

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