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Comunicação & Problemas

20 de setembro, 2021

O quase impeachment e a sabotagem das vacinas   Foi por muito pouco Decantadas as ocorrências no que deveria ter sido a Semana da Pátria […]

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O quase impeachment e a sabotagem das vacinas

 

Foi por muito pouco

Decantadas as ocorrências no que deveria ter sido a Semana da Pátria e o presidente da República transformou em surto de embates contra a democracia, analistas na imprensa encontraram pontos de convergência que me parecem decisivos. Tento resumi-los.

(I) Bolsonaro e os alucinados que o cercam pensaram de fato num golpe de estado quase clássico, com uma diferença: os tanques na rua substituir-se-iam pela malta de seguidores-raiz, quem sabe ajudada por insuspeitada ‘cavalaria motorizada’ – pesados caminhões e seus motoristas bolsonários. Essa tropa de assalto, no entanto, esteve aquém em quantidade e disposição do que desejara o projeto de ditador ou, mais provavelmente, as coisas não funcionaram como ele esperava.

(II) Assim estivemos mais próximos da abertura de processo de impeachment que de um golpe bem sucedido, em função da relativa fragilidade do esquema bolsonário ante a reação enérgica e tempestiva das instituições, representadas principalmente pelos presidentes do Stf, Tse e, ‘vazou’ depois, respaldo não explicitado da Procuradoria Geral da República.

(III) Mais pelo que não disseram que pelas notas emitidas em reação aos ‘tresloucados gestos’ (!) de Bolsonaro, os presidentes do Senado e Câmara meio que o deixaram a falar sozinho. Ele esperava apoio decidido de Artur Lira e mais do mesmo de Rodrigo Pacheco, um radical da moderação, mas obteve deste repúdio bastante claro a aventuras totalitárias e daquele um pálido aceno à contemporização, temperado por condenação das “bravatas” presidenciais.

(IV) Não obstante os militantes fora-da-lei estiveram perto de causar sérios danos (inclusive físicos) à normalidade democrática: ‘caminhoneiros’ (na verdade motoristas assalariados de empresas engajadas nas tropas-de-choque da famiglia presidencial) imaginaram transformar suas poderosas máquinas em carros de combate, para atacar o edifício-sede do Stf; até pensaram ter êxito, conseguiram romper as grades de isolamento, mas acabaram contidos pela Pm de Brasília – algo não deu muito certo nos esquemas de ‘aparelhamento’ das corporações policiais.
(V) Desse conjunto de fatos e fenômenos, em destaque as provas de crimes de responsabilidade e comuns reforçadas pelo próprio presidente nos atos belicosos do 7 de setembro resultou a mais clara derrota, até agora, das pretensões golpistas do ex-tenente insubordinado. O processo de impeachment por muito pouco não foi deflagrado, mediante iniciativa inédita do Supremo Tribunal Federal, que contornaria a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e teria apoio tácito até do procurador geral da República.
(VI) Só não avançou, o processo de impeachment, porque o presidente recuou em todas as linhas (sobretudo no front jurídico) com a tal ‘carta’ que foi compelido a assinar, engendrada por um até então insuspeitado mediador.
A participação do ex-presidente Michel Temer merece considerações à parte.

Salvador; da Pátria?…

Contumaz em seu estilo contemporizador, propenso a rasgos de coragem em favor dos fortes e opressores que exercitou em dois anos e quatro meses de governo anódino (num tempo quase igual, um mês a menos, Itamar Franco revolucionara o Brasil), Temer readentrou o jogo político sob alegadas razões de arrefecer o ambiente incendiado pelo presidente no 7 de setembro.
Seus aliados (incrivelmente ele os tem, e fiéis) tentaram fazer do episódio uma ‘volta por cima’, ele próprio deu entrevistas a alardear-se pacificador, voz supostamente sensata a aplacar sobressaltos às instituições.

…não; de Bolsonaro

O que obrou, entretanto, foi salvar Bolsonaro do impedimento que certamente aconteceria se o processo tivesse curso quando o presidente foi apanhado com a boca na botija, batom na cueca e demais evidências necessárias a, no mínimo, desencadear procedimentos legais que teriam grande chance de êxito.
Se me permitem os leitores talvez pretenciosa autocitação, lembro que na edição anterior desta coluna comparei Temer a lord Halifax, prestigiado líder conservador no Parlamento britânico dos anos 1930, ex-primeiro-ministro que apoiou o seguidor Chamberlain no infame apaziguamento de Hitler – e de concessão em concessão o fuhrer acumulou forças para atirar Europa e mundo na mais assassina guerra da história.

O segundo time…

Frequentador habitual do ‘segundo time’ da política, o ex-presidente tem nenhuma habilidade e muito menor capacidade de movimentar esferas mais transcendentes da política mas no jogo miúdo, como o de Bolsonaro e comparsas, pode fazer estragos – e fez, ajudando a frustrar a melhor oportunidade até hoje encontrada defenestrar o tiranete e sua grei.
Nisso repetiu feitos anteriores da carreira, por exemplo quando líder do então Pmdb na Câmara que atrapalhou iniciativas modernizadoras de Itamar no setor energético ou ao assumir sorrateira liderança do processo de impeachment da senhora Rousseff – trauma possivelmente evitável.

…e seus desastres

(Inevitável mesmo é lembrar que a presidente Dilma, outra costumeira ocupante do banco de reservas inopinadamente levada ao proscênio, bem contribuiu para o desastre quando… – cala-te! boca maledicente; prometi não criticar o Pt enquanto não nos livrarmos de Bolsonaro.)

Intérpretes dissonantes

Tratava, porém, ao iniciar estas lucubrações sobre as análises políticas encontradas na imprensa no pós 07.09.2021, do que me pareceram acertos em série nas conclusões majoritárias que me atrevi a coligir.
Agora abro espaço a interpretações mais críticas, à parte e em parte dissonantes das correntes dominantes – por exemplo, o artigo que comento a seguir.

Asilo machadiano

“Transita-se neste momento no Brasil por um ambiente de asilo machadiano” – espanta-se o jornalista, professor e escritor Aylê Selassié Quintão a lembrar o conto O alienista, um dos mais intrigantes textos de Machado de Assis. Um breve resumo da ópera (como me acode à memória):
Simão Bacamarte, psiquiatra em Itaguaí, descobre ao longo do atendimento aos consulentes e as próprias análises que todos na cidade desviam-se do que a ciência, em seu entendimento, considera ‘normalidade mental’, o que quer isso signifique. Marchas e contramarchas vencidas manda todos ao manicômio e finalmente, rendido ao absurdo, libera a turba e interna-se a si mesmo.

Perdas, retrocesso

É pálida, esta síntese, muito aquém da genialidade do conto; serve apenas para situar minha apreciação – e bota apreciação nisso! – do artigo de Aylê, brilhante como sempre. Leiam um pouco do que ele descobre, e denuncia:
[Tem-se] a impressão de que [Bolsonaro] gera os elementos de que precisam os doutores barcamartes para interná-lo.
“Desapareceu a tecnocracia de estado. O país vem sendo governado por quem não consegue distinguir seu patrimônio do interesse público.”
“A caminhada da estabilização […] foi invertida, as soluções dadas – como o ganho fenomenal com o Plano Real [no governo Itamar] – estão-se perdendo, retrocederam em desvios ideológicos, políticas irracionais e gestores incompetentes.”

Dilema patético

Ouso no entanto discordar não da análise de Ailê, mas da interpretação da cena política devida ao também conceituado jornalista Carlos Brickmann, que o articulista cita:
“Os cidadãos – conforme Brickmann – vão sendo conduzidos a um dilema patético: escolher nas eleições de 2022 um corrupto para fugir de um louco ou votar em um louco para evitar um corrupto.”

Mal absoluto

O jogo de palavras é atraente, a oposição entre o “louco” e o “corruto” é sugestiva do triste momento que nos compete viver e, quiçá, compreender.
Entretanto a conclusão parece-me descabida, pior ainda se inoportuna: não dá pra equiparar Bolsonaro a qualquer oponente, mesmo por quem desdenha ou repudia algum(uns).
O anômalo ocupante do principal gabinete do Palácio do Planalto encarna neste momento o mal absoluto; não cabem analogias.

Melhor o Demônio

Se precisar de respaldo ante o bem construído porém a meu ver equivocado argumento de Brickmann, mais o aparente endosso de Aylê, valho-me da boutade de Winston Churchill:
“Se Hitler invadisse o Inferno, eu apoiaria o Demônio.”

Mudo… e nocivo

Seja como e por que for, o certo é que desde sua quase debacle Bolsonaro anda calado: há incríveis onze dias (pode desmentir-me neste fim de semana) não ataca instituições nem seus titulares.
O que não significa haja mudado sequer uma frase da solitária página que poderia resumir o, digamos, ‘pensamento’ bolsonário sobre o Brasil e seus destinos.

Ataque covarde

Após uma conversa com o jefe o ministro da Saúde, que afinal se revela um Pazuello sem farda, deitou falação antivacinas e fez editar documento oficial mandando sustar a imunização de crianças e adolescentes de 12 a 17 anos.
Foi um ataque insano, covarde contra a imunização e, mais grave, o ministro fê-lo acompanhar de suspeitas mentirosas contra a vacina da Pfizer, considerada segura (inclusive para essa faixa etária) pela Organização Mundial da Saúde e entidades conceituadas em todo o mundo, entre elas a nossa Anvisa.

Recusa unânime

Menos mal que uma rara unanimidade entre instituições e agências de pesquisa, comando e coordenação da área, respectivos cientistas e outros atores – até do governo da União – tenha-se conformado para desfazer eventuais dúvidas e recusar, de pronto, a iniciativa do presidente e seu acólito.

E que governadores, prefeitos, demais executivos descobrissem o joguinho primário (e sujo) e mantivessem a programação, embora atrapalhados pela falta de imunizantes – essa, sim, devida à inapetência federal por ações consequentes a qual Pazuello (perdão!, Queiroga) tenta disfarçar.

 

Tributo a Octavio Malta (Última Hora, Rio, circa 1960)
Marco Antônio Pontes
([email protected] ou [email protected])